O tempo de Abril
Vivi um tempo onde as palavras se escondiam no silêncio, onde opiniões divergentes significavam castigo, dor e sofrimento. “Ser feliz” era aceitar que alguém tomasse o seu pensamento e o tornasse refém das sua vontade e decisão. Na ilusão da paz uns eram seguidores inconscientes e outros seguidores por medo. Os divergentes, em nome da liberdade, não tinham espaço, na família, no país e muitas vezes na sua própria vida.
Felizmente, na transição da infância para a adolescência, acordei em Abril e saí para a vida com o direito à liberdade. Participei no entusiasmo da conquista, chorei as lágrimas da alegria coletiva, e continuei a crescer com direito à palavra e à opinião. Pude ser curiosa, aprender sobre política, explorar, expandir o meu gosto pela leitura, pela música, pela dança, ter prazer no conhecimento e nunca esquecer que essa possibilidade nasceu comigo nesse dia em Abril.
Com consciência das imperfeições e dos erros, só posso estar eternamente grata a todos os que, de diversas maneiras, permitiram que a liberdade fosse real e que tão simplesmente a pudéssemos ver, ouvir e sentir. Ter estado presente na alma de Abril é mais do que um privilégio, é uma marca da história fixada para sempre na minha identidade.
Hoje, felizmente para todos, somos livres no nosso país. As gerações que já nasceram em liberdade tiveram e continuam a ter outros desafios. Abril foi o início de um percurso que abriu e continua a abrir caminho para outras conquistas que não se esgotam na vontade e no desejo da sua resolução.
Discordo do discurso que subtrai às gerações que nasceram em “liberdade” o direito de serem o que são, o resultado saudável de um país a ensaiar-se em liberdade. Entre as virtudes e os erros, criamos gerações competentes para exprimir direitos e, sem medo, assumir diferenças e pluralidade ideológica.
Hoje o país e o mundo vivem histórias diferentes do passado de Abril, onde os valores da solidariedade, da livre expressão do pensamento e da união entre povos, colide com personalidades dominantes agressivas e antidemocráticas. Hoje não somos só portugueses, somos pertença de um mundo global em plena crise de identidade. Estamos dentro, fazemos parte.
É muito bom ver as crianças e os jovens a participar na festa de Abril, é bom ver a comunidade a relembrar a história e a revisitar o tempo onde Portugal renasceu e aprendeu a ser livre. Mais do que olhar as novas gerações, quer pelo que julgam ser excessos ou passividade, pelo que subentendem ser desinteresse, é preciso não esquecer que a história não se desenha sempre com o mesmo colorido. Não estamos num tempo fácil.
Para todos nós os cravos serão sempre um símbolo precioso que não se esgota no seu significado. Hoje, nas mãos de cada criança, Abril continua a ser a esperança de que podemos ser melhores em tudo o que fazemos com a liberdade que recebemos. A melhor herança é aquela que se mantém viva na história de cada um. Ser livre é mais do que viver em liberdade.