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Crónicas

Um domingo à tarde

A meio dos anos 70 o telefone era um aparelho preto e estridente pousado em cima de uma mesinha a meio do corredor e só servia para chamadas

O locutor gritava um golo no rádio a pilhas, mas o meu pai dormia na espreguiçadeira de lona e só ficava a saber o resultado mais tarde, quando passava água para ajeitar o cabelo e vestia a roupa de sair para ir ao desafio que contava nos domingos à tarde. Na garagem do meu tio Humberto a telefonia também estava sintonizada no relato, mas ali, sentados em cima de grades de cerveja, os homens gritavam clareza e contavam cartas e pretas a ver quem era o campeão do cassino.

O meu tio anotava as pontuações numa folha de papel e olhava por cima dos óculos quando se aparecia à porta, quase sempre para dar um recado. A meio dos anos 70 o telefone era um aparelho preto e estridente pousado em cima de uma mesinha a meio do corredor e só servia para chamadas. Para entregar ou trazer mensagens serviam as crianças e era nessa condição que se entrava na garagem, onde pairava uma nuvem de fumo, tal e qual como num clube inglês. O do meu tio Humberto era só mais modesto.

Aquele ambiente escuro, a algazarra das cartas e os cliques do abre-latas a estrear mais uma Coral pequena era apenas uma parte da vida social da casa, acabada de fazer e pintada de azul claro. A casa mais bonita da minha infância onde, todos os domingos à tarde, havia visitas e a minha tia Alice servia um lanche de pão com queijo ou com marmelada e mandava buscar à garagem uma garrafa de Brisa Maracujá.

As amigas da minha prima e os amigos do meu primo ficavam pelo quintal a falar de assuntos que, na maior parte das vezes, fugiam ao meu entendimento. Comentavam muito os filmes que tinham visto, mas para mim cinema era o filme de cowboys da sessão da tarde e os desenhos animados da Heidi na televisão e por isso comia depressa o almoço e corria caminho acima para não perder a programação a preto e branco da RTP-Madeira.

E quando a minha tia apagava a televisão - para não aquecer muito e não se estragar - ia passear pela fazenda ou admirar o pombal onde viviam dezenas de pombos, todos anilhados. O meu primo Vitor dizia que eram pombos correio, que podiam levar mensagens importantes a grande distâncias, até Lisboa se fosse preciso e eu ficava a matutar naquilo, num pássaro a voar tão longe e como não parecia possível. Todas as tardes, fossem de domingo ou de outro dia da semana, o meu primo soltava os pombos e parecia-me extraordinário que voltassem, todos, um por um. Talvez fosse verdade, aquilo de voar muito longe.

Quando me fartava de andar por ali, a falar sozinha e a imaginar que era grande e conduzia um Mini Azul escuro como o meu primo, ia sentar-me muito calada a ouvir as histórias daquelas raparigas e rapazes novos, a apreciar os modos e as roupas. Um dia, daí a muitos anos, eu também ia ser assim, como eles, a rir a meio de uma roda de pessoas novas, a combinar ir ver um filme ao João Jardim ou ao Casino ou onde fosse, lá nessa coisa que chamavam cinema e eu nunca tinha visto como era.

Eu não tinha visto muito além de ir à venda comprar cigarros avulso para o meu pai ou rapé para a minha tia Alice, numa casa num beco por cima do campo do Marítimo, mas admirava aquelas maneiras, como penteavam o cabelo, e arranjavam unhas e como usavam as blusas justas e de colarinhos grandes. Eu ia ser assim como elas: ia cheirar a Anais Anais e ter as pestanas carregadas de rímel. O que eu queria era crescer, saltar anos se fosse preciso, ser criança era aborrecido.