O despertador dos sentidos
Relações perfeitas são perfeitas na sua imperfeição. Aperfeiçoam-se na prática do amor diário. Amor gera amor. Como escreve o poeta brasileiro Mário Quintana “o amor é quando a gente mora um no outro”
A nossa vitalidade hiberna sempre que o amor está ausente. A citacão não é minha. Ouvia-a do Cardeal Tolentino Mendonça e ressoa forte deste lado. Também acredito que o amor é o verdadeiro despertador dos sentidos. É o meu filtro preferido. É o primeiro filtro que procuro colocar quando tenho dúvidas sobre como agir perante alguém (sobretudo, em dias de desnorte, quando olho para aquela que vejo refletida no espelho). É um filtro que contém em si uma pergunta: “O que faria o amor?”
Sempre que amamos, de verdade (sabendo que essa varia de pessoa para pessoa), deixamos de ansiar pelo amor dos demais, porque já o encontrámos em nós. Claro que isto eleva a fasquia. Mas também nos liberta. Liberta-nos de nos despojarmos, de nos abandonarmos, de nos perdermos da nossa própria geografia, identidade e dignidade. Liberta-nos até, de duvidarmos de quem somos realmente.
Este amor é integrador, maduro, honesto. É empático, tem como pilar a compaixão (aquela que os ocidentais denominam como auto-compaixão, mas que na Ásia continua a ser compaixão, porque uma não existe sem a outra). É uma forma de amor que permite que amemos apesar de tudo. Sem condições. Sem preencher uma checklist que é tantas vezes herdada dos antepassados, da cultura, da sociedade e do contexto onde se vive.
E no dia em que nos permitimos amar com esta dimensão, deixamos de ser companhia pobre de nós mesmos e ficamos livres para amar. Tornamo-nos humanos. Não é acaso do destino. É a nossa condição.
A intolerância ao outro é apenas um reflexo do caminho que ainda nos falta percorrer até à fonte de amor infinito que somos.
Voltando aos olhares, há (e haverá sempre) olhares e olhares. Todos eles revelam mais sobre quem olha do que quem é olhado. Resistência a caminhar e a olhar desde o filtro do amor, é escolher manter relações tóxicas que revelam tão só a necessidade de preencher um vazio interior. É óbvio que é muito mais fácil utilizar critérios humanos para tentar amar. Gostar de quem gosta de nós, de quem nos diz palavras bonitas, gostar daqueles que nos tratam bem, dos que têm o mesmo mapa cultural e de crenças. Dos que nos são familiares. Eu também gosto. É fácil e fofinho, é até quentinho e aconchegante. Só que ficar por aqui é negar a nossa condição espiritual. Ficar por aqui é viver num marasmo, num amor incompleto, apequenado e imaturo. E esse, não está à altura de quem somos.
Amar é o acto mais sublime de vulnerabilidade, pede coração aberto, que baixemos a guarda e despertemos os sentidos, com curiosidade. É um gesto de abertura que rompe o confinamento da alma e de quem somos. Habitar esse milagre é sermos inteiros, sermos plenos connosco e com o outro. Como diz Tolentino Mendonça, “o amor é o degelo. Constrói-se como forma de hospitalidade.”
A falta dessa hospitalidade é a mais profunda das desconexões. É arrogantemente perigosa e traz sérios obstáculos à vida, à criação de relações saudáveis, ao desenvolvimento do todo, à humanidade. Traduz-se em apatia, indiferença, cinismo e egoísmo.
Colocássemos todos o filtro do amor e, como li há anos no manuscrito de um professor de psicologia humanista e transpessoal, poderia ser que, em breves instantes olhos nos olhos, diante dos que pensamos serem os nossos piores inimigos, derretêssemos o gelo e derrubássemos os muros que nos distanciam uns dos outros.
Amar desta forma não garante que vai estar sempre tudo bem, não garante que não aparecem obstáculos, e também não significa não definir limites pessoais, permitindo invasões constantes de campo. Significa apenas que vivemos intencionalmente, conscientes, em igual dignidade, valor, em responsabilidade pessoal e integridade. Que em caso de necessidade vamos responder desde um lugar de paz e união. Porque somos sempre co-responsáveis pelo estado de consciência em que os nossos encontros se dão. E quem se ama percebe, sem dificuldade, que superou os próprios preconceitos. Entra em campo o olhar para o próximo, pensar e sentir: “E se fosse comigo?”
Parece-me tão claro que se treinássemos todos, diariamente, o olhar despojado do medo, da insegurança, da paranóia, afastar-nos-íamos dos julgamentos, da rigidez, da inflexibilidade, do desconforto e da necessidade de ter razão. Seríamos pontes e estaríamos mais próximos do que aqui viemos fazer: amar e ser amados. “Somos poeira das estrelas.” Estamos todos de passagem. Esta vida é um sopro. Que seja de amor infinito!