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Crónicas

A capacidade de se sentir a última

A adolescência, a minha pelo menos foi assim, é um caminho que se atravessa sozinho até sair do outro lado num lugar mais luminoso

Eu fui uma adolescente insegura e assombrada por uma lista extensa de defeitos onde, por má sorte, preenchia quase todos os requisitos para ser um alvo ou passar à condição de invisível. E nenhuma das opções era boa para aquela miúda pesada, tímida e tão ansiosa por encontrar vaga nos grupos de raparigas que passeavam pelo jardim ou ocupavam o muro com vista para o campo de cimento no intervalo das aulas.

A minha figura, aumentada pela fome que me consumia e vestida com aquelas saias feitas de sobras de tecidos da alfaiataria do meu tio Humberto, era esquisita e confusa. E ninguém sabia o que fazer comigo, com meu tamanho XL, se abria a roda ou se fazia de conta que não existia. A maior parte do tempo eu ficava ali, a ouvir, muito calada e sem ter o que responder.

É estranho perceber, a esta distância, o quanto lutei, nos dias que passei naquela escola da Rua dos Ilhéus, para ter um lugar e pertencer a uma categoria. Acima, na curva da minha casa do Laranjal eu era a filha do mestre Gabriel, a neta de um homem de posses e terrenos; ali era apenas uma adolescente desajeitada a quem faltavam as maneiras da cidade.

A vergonha atava-me a cabeça e o que me saía pela boca ou vinha num tom alto demais ou era inapropriado. Às vezes tentava disfarçar a timidez fazendo de forte e corajosa e devo ter exagerado um ou outro pormenor do meu quarto, de ter uma cama mais bonita e posters de cantores da moda colados na porta do armário. E dei o meu número de telefone a quem teve a paciência para o anotar.

Eu podia orgulhar-me disso, de ter um quarto só meu e o nome do meu pai na lista telefónica, com morada e número, mesmo que fosse como era, a rapariga das blusas de flanela aos quadrados que todas as tardes ia para a fila do 12 na Avenida do Mar remoer as pequenas conquistas como as amostras de perfume e os brincos que a minha prima Ana me emprestava e resultava num comentário simpático.

Nunca fui aceite, embora tenha lutado contra a sensação de ser invisível, apesar do esforço para que dessem por mim. Eu não queria ser famosa, nem popular, queria amigos, pessoas que me ajudassem a atravessar adolescência, a vencer aquela sensação de ser a última, de ter tudo ao contrário: o cabelo, o tamanho, o formato das pernas e a cor da pele, da timidez que, às vezes, se confundia com arrogância.

A adolescência, a minha pelo menos foi assim, é um caminho que se atravessa sozinho até sair do outro lado num lugar mais luminoso. O fim desse percurso foi no secundário quando, nos bancos do pátio da Jaime Moniz, a matar o tempo num furo no horário, uma rapariga me disse, sorridente, “eu vou contigo ao arquivo”. Somos amigas até hoje.