O ano que pareceu ser o último
O medo de morrer, a sensação de que aquele podia ser de facto o meu último ano pairava sobre as nossas vidas
Eu guardei quase tudo na memória como se 1994 fosse o último ano da minha vida. Não consegui evitar depois de ouvir o diagnóstico do dr. Mário Passos que, daquele modo que os médicos têm, tentou suavizar o que não podia ser dito de outro modo: era cancro e fazia pouca diferença ter só 23 anos e estar uma tarde bonita, com um céu limpo e azul. Antes de virar costas, antes de tentar fugir dali para respirar melhor, o dr. Mário pediu-me para suspender todas as decisões importantes e prometeu devolver-me a vida daí a uns meses.
O prazo era algo entre 6 a 9 meses, muitos dias e semanas, tempo demais para ficar naquele lugar onde a doença me deixou, tão estranho e inóspito. Eu não estava fora, mas também não estava dentro e à minha frente as pessoas casavam, mudavam de emprego e mandavam postais das férias no estrangeiro. E, sem perceber, comecei a fixar imagens da televisão, passagens de livros, falas de filmes e insignificâncias como a minha mãe a dizer-me, no regresso da casa das minhas tias aos domingos à noite, que eu ia ter direito a todos os sonhos.
A minha mãe sofria muito e da maneira que as mães sofrem, mas virava o mundo do avesso para me manter à tona de água, o mais perto de tudo o que me deixava feliz. Às quartas-feiras à tarde, além de ir à casa de bordados, fazia desvios para comprar morangos e ir à Livraria Esperança com a lista dos livros que eu queria ler. E todas as manhãs, quando me trazia o pequeno almoço, vinha com o resumo das notícias da rádio: o massacre do Ruanda, as eleições na África do Sul, a Guerra da Bósnia, a morte do Ayrton Sena, o bloqueio da Ponte 25 de Abril.
As tragédias e as lutas do mundo num ano parecido aos anteriores para as outras pessoas. Eu, na minha casa do Laranjal, combatia o sentimento de derrota que, à menor contrariedade do tratamento, ensombrava tudo. O medo de morrer, a sensação de que aquele podia ser de facto o meu último ano pairava sobre as nossas vidas. E lembro-me que, se calhar por isso, seguimos com um entusiasmo invulgar as polémicas e as celebrações dos 20 anos do 25 de Abril. A minha mãe cantou as músicas que sabia de cor e contou histórias. Dela e das minhas tias, do medo que tiveram de perder as casas e os terrenos ou que, depois, fosse proibido a religião.
As diferenças ideológicas subiram encosta acima e dividiam as pessoas em comunistas ou fascistas, os que iam buscar revistas com foices e martelos à venda e os que respondiam à convocatória do bispo para impedir a ocupação do seminário. A minha mãe acrescentava sempre a história do vizinho que partira os óculos na manifestação e depois explicava que tinha deixado de ser poupada e forreta por causa da revolução. E ouvi-la falar era como dar forma aos documentários, ver o antes e o depois pela voz de uma mulher normal, que, aos domingos à noite, tentava dar força e coragem à filha doente.
A mesma mulher para quem a revolução tinha chegado tarde, muito depois do prazo para fazer um curso e ser professora, mas que continuava acreditar que o futuro seria melhor, muito melhor do que tinha sido até ali. E sim, eu ia ver, ia ficar boa e ter todos os meus sonhos. O 25 de Abril tinha sido para isso, para dar sonhos e formas de os realizar.