Há um "esforço de apagar memória" do Tarrafal
Mais de 500 pessoas estiveram presas no "campo da morte lenta", 36 das quais morreram
O porta-voz dos presos políticos na cerimónia dos 50 anos da libertação do Tarrafal, em Cabo Verde, diz que falta cuidado em preservar o campo de concentração e que há esforços "de apagar a memória" da luta de libertação.
O antigo embaixador cabo-verdiano Luís Fonseca considera "excelente" a comemoração com os quatros países (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Portugal) no dia 01 de maio, no campo de concentração, mas diz que, depois das datas redondas, não tem havido atenção.
O antigo secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entre 2004 e 2008, até foi dado como morto pela funcionária à entrada do Museu da Resistência, nome atual da prisão, da última vez que visitou o espaço.
"Há uma razão sentimental para, de vez em quando, fazer essa visita com a minha mulher e filha: ela nasceu e, pouco tempo depois, quando já estava em condições de poder viajar, foram ao Tarrafal para eu a conhecer", recorda, em entrevista à Lusa.
A última visita em família foi em 2023.
"Voltei-me para a jovem que estava a atender o público e perguntei-lhe: já ouviste falar de Luís Fonseca" e a resposta foi "não".
Não se identificou logo, explicou que estava a falar de um dos presos políticos cabo-verdianos e o que ouviu a seguir, perturbou-o: "Ela disse: já morreram todos. E eu disse que não, que sou um deles. Ela olhou para mim com um ar pouco crédulo".
"Quando um dos sobreviventes vai ao Tarrafal e lhe afirmam que ele está morto, dá para rir e dá para pensar relativamente ao empenho que realmente existe em preservar a memória", diz.
"Isto é um bocado triste, mas penso que, muitas vezes, de forma deliberada ou não, há um esforço no sentido de apagar a memória" da luta da libertação, com uma motivação de natureza política, refere.
"A memória é indispensável para a preservação da identidade, mas pode ser incómoda e perguntar-se-á: porquê? A resposta não a sei bem, só posso imaginar", acrescentou, escusando-se a aprofundar: "imagino muitas coisas, tenho de refletir mais sobre o assunto".
Luís Fonseca está a poucos dias de completar 80 anos e tem feito o mesmo alerta sobre falta de atenção ao Tarrafal várias vezes, desde há anos.
"O Tarrafal é de facto um símbolo do fascismo português", da "negação de direitos" e "há um dever de memória para com os combatentes que deram a vida pela liberdade", fazendo com que o sítio "não deva ser esquecido pelas gerações, porque representa a luta dos povos de quatro países".
Perturba-o, sobretudo, a razão para o esquecimento, "se é de facto deliberado", e "qual o risco de manter a memória viva? Em que pode perturbar projetos, políticas, planos? Essa é que é a questão".
Uma questão que dirige "a todos, à sociedade, ao Governo [cabo-verdiano], obviamente, porque tem as alavancas", dirigindo-se a todos os governos, de diferentes partidos desde a independência, que diz não terem tomado "medidas fortes no sentido dessa preservação".
"Há uma falha grande: não há envolvimento de nenhum dos antigos presos" na formulação do museu.
"Um museu que se preze teria o cuidado de contactar os que estão vivos e seus herdeiros no sentido de colecionar lembranças. Eu tenho algumas coisas bastante interessantes", diz Luís Fonseca.
Trabalhos esculpidos em coco pelos presos políticos, desenhos e pinturas de Pedro Martins, a tradução feita às escondidas de "O Estado e a Revolução", de Lenine, pelo próprio Luís Fonseca, são alguns exemplos.
"Alguma vez se interessaram? Nunca. Daí a pergunta: para que serve o museu, qual o objetivo? É apenas para fins turísticos, é apenas para gerar algum rendimento? Não é algo pessoal, mas quando penso nas consequências deste esquecimento e, sobretudo, nas motivações, aí, eu fico um bocado preocupado", concluiu.
Os presidentes de Cabo Verde, José Maria Neves, Angola, João Lourenço, Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, e Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, os quatro países de origem dos presos, celebram na quarta-feira, 01 de maio, os 50 anos da libertação do Tarrafal - uma placa memorial assinala os nomes dos 36 mortos no local pela ditadura colonial portuguesa.
A maioria, 32 mortos, eram portugueses que contestavam o regime fascista, presos na primeira fase do campo, entre 1936 e 1956.
Reabriu em 1962 com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom, destinado a encarcerar anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde - morreram dois angolanos e dois guineenses.
Ao todo, mais de 500 pessoas estiveram presas no "campo da morte lenta".