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Porta-voz dos presos políticos teme novos "tarrafais" após 50 anos da libertação

Foto Lina Balciunaite / Shutterstock.com
Foto Lina Balciunaite / Shutterstock.com

"Tarrafal Nunca Mais" foi uma das frases que marcou a libertação do campo de concentração em Cabo Verde, mas o porta-voz dos presos políticos na cerimónia dos 50 anos de liberdade receia que possa haver outros "tarrafais".

"Não me estou a referir especificamente a Cabo Verde, mas, quando observamos o mundo", não se pode "garantir que não haverá outros tarrafais" porque há sinais de grande regressão nos direitos e liberdades, diz, em entrevista à Lusa, o antigo embaixador cabo-verdiano Luís Fonseca.

"Na minha geração, tínhamos uma visão muito mais otimista do mundo, parecia que caminhava sempre num sentido ascendente, mas foi uma grande ilusão", disse um dos mais antigos presos políticos cabo-verdianos do Tarrafal, onde esteve encarcerado entre 1970 e 1973.

Segundo Luís Fonseca, que está prestes a fazer 80 anos, "há sempre avanços e recuos e talvez os recuos sejam muito mais profundos" do que se possa imaginar.

"Há uma grande regressão e volto a essa questão que perturba bastante, a carnificina que está a ter lugar em Gaza, em nome de uma civilização e sob pretexto de uma luta contra o terrorismo", diz, numa alusão à resposta israelita ao ataque do Hamas, a 07 de outubro de 2023.

As regressões mostram um mundo "dominado pela força", por oposição ao direito ou às ideias, referiu aquele que foi também secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) entre 2004 e 2008.

Por outro lado, o mundo digital "representa um avanço tecnológico importante", mas é também "extremamente eficiente em fazer esquecer a realidade" e a "necessidade de agir", assinala.

Há um papel manipulador semelhante ao que tentava exercer o último diretor do Campo do Tarrafal, Eduardo Fontes, que queria "reeducar" os presos políticos para a sociedade ideal, proclamada pela ditadura colonial portuguesa.

"É uma questão de consciência e de apropriação do que são os motores do mundo. Há toda a organização da sociedade no sentido das eleições, mas, no fundo, as pessoas acabam por ser condicionadas" e escolhem aquilo que é "ditado pela ignorância", considera.

"Como é que podemos fazer para que esses diretores não apareçam entre nós, agora, e sejam até colocados por nós no seu trabalho de alienação das pessoas? Eu penso que esse é um exercício que deve ser feito por todos os que pensem que vale a pena lutar por uma humanidade mais justa e mais verdadeira", refere Luís Fonseca.

Uma luta nem sempre fácil de encetar: na década de 60 do século passado, chamavam-lhe "doido" quando falava da independência de Cabo Verde, mas a receita de então pode ser a de hoje.

"Havia uma anestesia geral", descreve, a par de uma "campanha permanente do regime português, que usava os cabo-verdianos como sargentos para servir de intermediários nas outras colónias".

"Tenho a certeza que se se fizesse um referendo, aqui em Cabo Verde, em 1960, poucas pessoas iam votar na independência, porque nem se sabia o que era", refere.

Faltava o "fermento" para fazer crescer o bolo e, sem redes sociais nem outros meios instantâneos, só havia as conversas presenciais, com cada pessoa, como única ferramenta -- que tinha de ser usada com discrição.

"Éramos 250 a 300 mil habitantes, a maior parte na miséria, e a única forma [de promover ação política] era com a conversa, de forma discreta, porque entre as pessoas que tentávamos aliciar haveria informadores da PIDE, que pagavam bem para o nível de miséria que havia em Cabo Verde", refere.

A "fermentação" era um trabalho lento em que ativistas como Luís Fonseca optavam por zonas da periferia das vilas e cidades.

"Por um lado, percebíamos melhor as dificuldades que existiam e a realidade da situação, mas também tínhamos a possibilidade de ter conversas mais francas, sobre o dinheiro que não chegava para comer, o miúdo que não podia ir à escola, a casa que estava a cair, questões concretas que permitiam encetar conversa e levar as pessoas a pensar em soluções", diz.

Outra base para as conversas residia na "simples comparação de como viviam as pessoas mais simples e as pessoas desafogadas".

O português, comerciante, militar, administrativo ou engenheiro, "muitas vezes tinha atitudes arrogantes para com os cabo-verdianos e tudo isso contribuía para despertar o sentido nacionalista".

Os presidentes de Cabo Verde, José Maria Neves, Angola, João Lourenço, Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, e Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, os quatro países de origem dos presos, celebram na quarta-feira, 01 de maio, os 50 anos da libertação do Tarrafal -- uma placa memorial no local assinala os nomes dos 36 mortos no campo de concentração pela ditadura colonial portuguesa.

A maioria, 32 mortos, eram portugueses que contestavam o regime fascista, presos na primeira fase do campo, entre 1936 e 1956.

Reabriu em 1962 com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom, destinado a encarcerar anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde -- morreram dois angolanos e dois guineenses.

Ao todo, mais de 500 pessoas estiveram presas no "campo da morte lenta".