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Ucasse!

Tal como as palavras babushka, matriosca, balaclava, gulag, pogrom, quefir, apparatchik, glasnost, perestroika, troika, a palavra “ucasse” foi assimilada da língua russa para várias das mais faladas línguas no mundo, incluindo o português (com ligeiras variações da grafia).

Significa essa palavra, “decreto outrora emanado do imperador da Rússia” (Infopédia) ou “decreto de um soberano, na Rússia imperial” (Priberam). Mas propriamente a Priberam oferece uma segunda definição, muito relevante aqui: “decisão autoritária, ditatorial”.

Foi mais ou menos isso que aconteceu, conforme a notícia que há poucos dias correu um pouco pelo mundo inteiro: o Ministro da Cultura da República Russa de Chechénia decretou que será banida (toda?) a música demasiado lenta ou rápida. Isso é, demasiado lenta ou rápida na ótica daqueles que pretendem que os chechenos oiçam apenas a música em andamentos que se compadecem com a tradição musical local (definida como “mentalidade e o ritmo musical chechenos” – entre os 80 e 116 batimentos por minuto). Com o aval do chefe da república, o notório Ramzan Kadyrov, essa diretiva pretende trazer “ao povo e ao futuro das nossas crianças a herança cultural do povo checheno”. O ucasse refere-se explicitamente a todas as obras musicais, vocais e coreográficas e manda que os andamentos destas obras sejam adaptados a essa nova realidade, até ao dia 1 de junho. “Emprestar a cultura musical de outros povos é inadmissível”, afirmou o ministro.

Os géneros tais como pop, dance e música eletrónica estarão assim, de grosso modo, seriamente afastados, uma vez que frequentemente ultrapassam o limite prescrito. Não se vislumbra ainda como é que as restrições serão policiadas (os agentes a andar com as apps de metrónomo nos seus telemóveis?) neste país tradicionalmente muçulmano. A gama delineada de velocidades supostamente representa a gama total dos padrões morais e éticos da vida dos chechenos, enquanto a influência da cultura ocidental está assim representada como “poluidora”, uma atitude bastante comum para os países muçulmanos mais radicais.

Não há, entretanto, nenhuma referência específica, nas notícias acessíveis, à música clássica. Se for o caso, muitas das obras célebres seriam proscritas, até da música russa e inclusive o hino nacional da Rússia.

É de pressupor que o alvo principal desta medida taxativa é aquela música que atrai (ou distrai, dependendo do ponto da vista) os jovens e que é um catalisador da sua vida social. Não se pode negar que nos países democráticos, a música ouvida por jovens também muitas vezes facilita ou encoraja comportamentos antissociais e confrontacionais (em janeiro escrevi mesmo sobre a taxa elevada de mortalidade de alguns desses géneros, tais como hip-hop ou rap). E mesmo nos países considerados o exemplo da democracia moderna, tais como os EUA, a lista de censurados (maioritariamente por causa dos textos) desde os anos 50 estende-se de Elvis, Nat King Cole, Bob Dylan, os Beatles, Jim Morrison, Jimi Hendrix e John Lennon, a Janis Joplin, Rolling Stones e Bjork. No entanto, a eventual obscenidade ou caráter inflamatório dos textos nem sequer são referenciados no ucasse checheno. Trata-se meramente da “pulsação” supostamente desadequada ao espírito e ritmo da vida considerados próprios.

Apesar de representar um gesto extremo, inédito, desadequado e de fundamentação científica duvidosa, essa tentativa da proteção dos valores tradicionais não deve ser descartada de ânimo leve. Isso, porque, hoje em dia, a indústria, mercado e lucro da música destinados aos jovens sobrepõem-se, de grosso modo, aos valores herdados, e enquanto estão a escrever a história do presente ameaçam seriamente a continuidade da memória coletiva da tradição civilizacional, seja qual fosse. “Não há futuro sem o passado”, prega uma frase conhecida, e a maneira de manter o equilíbrio entre os dois é uma receita alquímica que pode variar de país a país, de sociedade a sociedade e de cultura a cultura. Mas negligenciar o passado motivando-se pelo lucro do futuro seria, deveras, uma jogada destinada à auto-negação e perda da substância daquilo que nos faz o que somos.

Um sistema democrático não comporta um ucasse, nem as predileções pessoais e gostos individuais podem ser legislados. A única maneira de desenvolver uma atitude crítica, de autorreflexão, de plena consciência, e de uma perceção holística das correntes que nos influenciam, é através da educação. Uma educação atualizada mas que proporciona uma perspetiva histórica; objetiva, no entanto, desenvolvida em diálogo; humanizada, para o educando não se sentir um objeto, mas sim um sujeito cujo crescimento e competências valorizam a sociedade inteira.