Serei o que me deres
O que acontece na infância não fica na infância. A maioria das abordagens e práticas de parentalidade e educação utilizadas, foram desenvolvidas antes de toda a informação cientifica à qual temos hoje acesso, sobre o cérebro, o neurodesenvolvimento, vinculação e o trauma. São práticas “fora de prazo”.
“Mãe, até quando?!” Perguntou-me a minha filha mais nova, quando percebeu que eu estava a investigar e a fazer uma reportagem para denunciar mais uma situação de maus tratos a crianças, num infantário.
Como é que se explica os maus tratos na infância, sobretudo, a outra criança?
Este caso - que o infantário alega ser ‘isolado’ - acontece no mês da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância. A iniciativa nasceu em 1989, quando Bonnie W. Finney, uma avó norte americana, amarrou uma fita azul na antena do carro, em homenagem ao seu neto, vítima mortal de maus-tratos. A intenção foi “fazer com que as pessoas se questionassem”. Hoje, muitos países usam as fitas azuis, durante este mês, em memória daqueles que morreram ou que são vítimas de abuso infantil e também como forma de apoiar as famílias e fortalecer as comunidades, nos esforços necessários para prevenir este tipo de abuso e a negligência. Em Portugal, a campanha, simbolizada pelo Laço Azul, é amplamente divulgada, quer pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, quer pelas CPCJ, que realizam ações de prevenção contra os maus-tratos.
“Serei o que me deres. Que seja amor”, é o slogan da Comissão Nacional.
É bonito. É, seguramente, importante. Mas será que cumpre a intenção da avó Bonnie? Será que cada um de nós, olha com honestidade para o exemplo que é para as nossas crianças? Será que cada um de nós, se auto-observa, desde os olhos das crianças com as quais nos relacionamos?
Na Suécia, por exemplo, na década de 50, do século passado, a palmada e outras formas de maus tratos infantis foram proibidos. Inicialmente aplicaram-se coimas pesadas e até penas de prisão e rapidamente, os suecos interiorizaram o óbvio: “Bater e castigar não é educação! É violência!”. E assim evoluíram do medo ao amor. Como é que, em Portugal, mais de 70 anos depois, ainda é preciso falar deste tema?
“O que podemos fazer para promover a paz mundial? Podemos ir
para casa e amar a nossa família.”
Madre Teresa de Calcutá
É assustador ler os inquéritos que indicam que a maioria esmagadora das famílias portuguesas considera que, “quando necessário” (seja lá isso o que for para cada pessoa), o castigo físico é uma forma legítima de educar. Segundo o estudo “Será que um palmada resolve?”, do Instituto de Apoio à Criança (IAC), realizado com base em inquéritos a 1943 pessoas, cerca de 30% dos inquiridos “ainda consideram poder usar-se castigos corporais em crianças”.
Já “todos” sabemos que a violência é hoje um dos maiores problemas sociais do mundo!
O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (OMS, 2014) aponta a violência como um problema de saúde pública no mundo e destaca que as suas consequências para indivíduos, famílias e comunidades, no curto e longo prazo, causam grandes prejuízos para o desenvolvimento social e económico de todo o Planeta.
Não há um único estudo que evidencie que bater e castigar crianças traz consequências positivas, mas há muitos estudos que demonstram os danos, muitas vezes irreversiveis, dos maus-tratos recebidos na infância!
Um adulto competente tem o cérebro maduro. Tem mais experiência e maturidade emocional para fazer auto-regulação e a partir daí, co-regular com uma criança. E é só desde essa co-regulação empática que é possível educar para o são desenvolvimento emcional, físico, individual e coletivo. Amor gera amor. As crianças aprendem por modelagem até aos sete anos. Isto quer dizer que os neurónios espelho estão mais activos do que nunca e ocupados a receber a informação da nossa comunicação não verbal, a um nível sem precedentes. Não é o que lhes dizemos, é sobretudo como lhes dizemos, com que tonalidade, com que intenção e ainda, o que fazemos. Não adianta dizer a uma criança para não bater nos colegas se a forma que os pais enontram para a “educar” é bater-lhe, castigá-la, humilhá-la, desprezá-la. O bullying começa, quase sempre, em casa.
É essencial que os adultos (pai e/ou mãe) atuem em vários níveis de prevenção e sobretudo, no acolhimento e transcendência da criança que existe em si próprios, tantas vezes a pedir colo e amor, a pedir para ser vista e reconhecida.
É possível exercer uma autoridade com amor, com empatia, com respeito, em igual valor e dignidade, sem ser necessário recorrer à punição.
O Mestre Zen Tanouye Roshi dizia: “Transforma-te na outra pessoa e continua a partir daí.” O que isto nos pede, é que escutemos além dos nossos preconceitos e dos nossos julgamentos. Pede que saibamos desligar o som das estórias que nos contamos sobre quem é que a criança deveria ou não deveria ser e fazer, para assim, a guiarmos, entendendo a sua mente, os seus pensamentos e as suas necessidades para, mais facilmente, percebremos quais são os seus medos, receios e anseios, a sua forma de olhar o mundo. Aplica-se a pais, a educadores, em qualquer situação, sempre que queiramos influenciar (bem diferente de manipular) o outro.
Nada disto é sobre permissividade. É óbvio que, tal como os adultos, as crianças precisam de limites, mas isso não significa berrar ou bater para obter obediência. A violência, sob a forma verbal ou física é sempre o pior caminho, não ensina nada de positivo.
Vejo muitos pais e educadores a aceitarem o desafio de praticarem uma parentalidade generativa. Que que passam a utilizar estratégias baseadas na ciência que promovem a responsabilidade pessoal e que respeitam a integridade da criança, visando promover uma autoestima e relações saudáveis. Onde a criança é parte integrante de um sistema, com exatamente o mesmo valor que os adultos, tendo liberdade de ser (e não liberdade de fazer). À medida que abraçamos e caminhamos na parentalidade generativa, nutrimos ainda mais, a paz dentro de nós, nos nossos lares, cultivarmos um ambiente familiar onde reina o amor, a empatia e a compaixão, moldando as mentes e os corações das gerações futuras, promovendo a construção de um mundo onde a bondade e a consciência são os alicerces de uma sociedade verdadeiramente humana. É assim que lançamos as sementes de um mundo mais compassivo e justo.
Hoje, já conhecemos tanto acerca da autoestima, das emoções, dos sentimentos, do neurodesenvolvimento, da resiliência, sobre o vínculo e a saúde mental que nos impelam a mudar a forma como exercemos e pomos em prática a educação e a nossa parentalidade. Que nos abre portas para ajudarmos os nossos filhos a manifestarem quem são, a crescerem saudavelmente e a tornarem-se adultos competentes, plenos, felizes, capazes de lidar com a sociedade de hoje. Que tal começar a colocar em prática?