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Análise

O que ainda faz falta

A pouco dias de comemorarmos os 50 anos do 25 de Abril, da conquista da liberdade e de todos os outros valores democráticos, o País mediático multiplica-se em balanços que invariavelmente dão a entender que a revolução é mais património de uns do que outros. Não admira que para evitar argumentos redutores há quem arrisque sem medos a apontar caminhos para os próximos anos da democracia, na tentativa de superar “fenómenos de ausência de liberdade que exigem uma resposta colectiva”, como sugeriu ontem a Comissão Nacional Justiça e Paz.

A lúcida nota da estrutura liderada pelo juiz Pedro Vaz Patto, que tem como missão despertar consciências porventura anestesiadas, diagnostica “desigualdades que ferem o nosso tecido social, deixando pessoas para trás”, bem como “a falta de visão de futuro” que “retira esperança e é, para muitos, condicionadora da liberdade e de oportunidades de uma vida digna”, ou ainda o “condicionamento da liberdade de pensamento e de expressão que não deve ser ignorado”, de que é expressão o que é partilhado sem filtros nas redes sociais e no restante espaço público.

“Os silos ideológicos em que nos encerramos contribuem para o fechamento ao outro, para o aumento de discursos racistas, xenófobos ou de intolerância, e para o aumento de vozes pedindo políticas de muros”, lê-se na análise que, por não partir da partidocracia vigente e estar acima de quaisquer interesses de facções políticas, tem o sublime mérito de propor esperança, se é que queremos preservar um bem maior. Sugere a erradicação da pobreza e a luta contra as desigualdades e a exclusão social como missão colectiva de prioridade máxima; a promoção da cultura de igualdade e respeito pela individualidade do outro, assim como uma cultura de escuta e de diálogo; o acesso equitativo e inclusivo aos direitos sociais como a saúde, a educação e a habitação; vigor na criação de políticas de longo prazo, sustentáveis e com consideração pela Casa Comum, que apostem em melhores condições de trabalho, de remuneração e de vida para todos; e ainda a valorização da dimensão ética baseada na dignidade humana.

O guião é exequível. Mas e as vontades de quem tem responsabilidades públicas? Se em plena Revolução fazia falta avisar, empurrar, acordar, animar ou dar poder à malta, como bem cantou Zeca Afonso, agora ainda faz falta motivar a nova malta para o essencial em vez do acessório, para as causas em vez das coisas, para a humildade em vez da arrogância e para a coragem em vez do calculismo. Para que tenhamos mais amanhã do que ontem, mais povo e menos polvo, mais contexto e menos pretexto.

O País que continua a ter “a corja à janela” ou atrás do teclado, que fomenta a denúncia anónima e os assassinatos de carácter, que não consegue serenar estados de alma e “a raiva nunca vencida” ou que espreita intimidades e vigia amizades sem escrúpulos não pode dormir na valeta e achar que tudo é treta. Até porque hoje nem só “o fascista conspira na sombra”. Na esquina da sociedade, na expectativa que o poder em saldos sobre sem esforço, há uma reles tribo interesseira, embora gerada pelo sistema, que tudo fará para dar cabo das conquistas de Abril. Basta que o descuido faça escola, o palpite ganhe lastro e o ódio faça o resto.