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O que ficará de mim

Homenagem a Luiz Peter Clode por ocasião da passagem de 120 anos do seu nascimento a 1 de Abril de 1904.

Ficará de mim a criança abraçada à mãe luzindo nas suas botas de cabedal de botões laterais e chapéu de palha com uma fita preta de seda onde se gravara a palavra Rússia, em cirílico, dos tempos dos Tzares, ao lado dos irmãos William e Dorothy

Ficará de mim para sempre os passeios de buxo, as tardes de piano, uma melancolia sobre o que já se foi na esquina de uma saudade persistente dos fins de tarde no verão, entre uma brisa fresca, um estudo de Chopin ou uma carta recebida por causa de um novo concerto recomendado pela marquesa Olga de Cadaval, que dava muito boas referências do jovem e talentoso Sequeira Costa, ou da criança prodígio Maria João Pires

Ficará de mim uma grande casa de muitos filhos e netos, a concentração nas suas leituras, apesar de um mundo de se agitava pela correria dos mais novos, os novelos de lã das avós que se desfiavam caídos ao chão, a rádio da BBC e uma televisão nascente, altíssima. Ficará a imperturbável atenção a uma escrita constante e curativa.

Ficará para sempre a diplomacia e uma capacidade de ouvir os outros, sempre discreto, longe dos holofotes da ribalta.

Ficará para sempre a determinação na criação das suas academias da música, sempre da música até ao fim, do seu piano na sala junto do canapé regency de damasco amarelo.

Ficarão também as academias de línguas e belas artes, a Sociedade de Concertos, o Museu de Arte Sacra, o património artístico da Madeira e a cultura britânica.

Ficará de mim a curiosidade do mundo, do tempo, da miríade de parentes atuais e doutros séculos, na busca de uma razão de ser ou existir, numa genealogia pessoal que era necessariamente a da sua terra e dos seus habitantes que procurou como ninguém até ao fim

Ficará o amor às casas da sua vida, de uma melancolia sobre um tempo que passará e levará, a mãe, o badminton, os primos, e todos os fins de dia no Monte e na Levada a ver as fumarolas dos vapores do cabo e o croquet com seus aros brancos e pesadas bolas de cores vibrantes.

Ficará para sempre a distração ao volante, a indiferença perante a subida sempre em primeira da rua do til, como se essa fosse a condição por inerência de um carro em andamento, com o pensamento na necessidade de investigar mais um ramo dos Pós-Siqueiras ou na perseguição do túmulo do príncipe de Trastâmara.

Ficarão os casacos de linho branco, o maple de flores de chintz atrás da porta da saleta, um pacotinho de café perfumado da Minas Gerais, os chocolates suíços e pão fresco.

Ficará para sempre Deus, depois de um batismo tardio e a Helena como ancora de tudo e de toda a família, na serenidade majestática do seu silêncio

Ficará o jardim de cima com seus passeios e lago com nenúfares, campo privilegiado de confidências e conversas inaudíveis, de um tempo de escuta, de ouvir a brisa e a sombra das árvores ou um familiar em apuros.

Ficará de mim a doença incurável de uma filha e a inteligência de prever o fim de um tempo que se abria a inexoráveis mudanças. Ficará o gosto pela comemoração dos aniversários, na certeza de serem irrepetíveis, nas festas grandes em se abriam as salas e se montava sobre a arca de cânfora um pequeno bar para whisky soda, com seu balde de gelo com argolas suspensas por cabeças de leão.

Ficará de mim o que depositarmos no coração dos outros e seremos o que deixarmos de infinito nos dias breves da mudança de lua, nos caminhos serpenteantes de pedrinhas e vagares

Ficará de mim a varanda debruçada sobre o Funchal ao nascer do dia com pássaros distantes

Ficará de mim a comoção fácil acentuada no fim da vida, pela inexorável passagem do mundo, e das primaveras e suas glícinias

Como dizia Margerite Yourcenar

Quando se gosta da vida gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana

Francisco António Clode de Sousa, seu neto.

Ilha da Madeira, 2024.