Será que os acidentes acontecem porque há “calhambeques” a circular na Madeira?
Vários comentários nas redes sociais associaram o despiste ocorrido esta manhã, no Estreito da Calheta, com um autocarro da Rodoeste ao “estado miserável” e à idade das viaturas que circulam nas estradas da Madeira. “Quem autoriza estes calhambeques podres a circular?”, questionava uma pessoa no Facebook. Será que o estado e as condições das viaturas explicam todos ou parte dos acidentes que acontecem no nosso arquipélago?
Não são conhecidos dados sobre as causas específicas dos acidentes com transportes pesados de passageiros no nosso país, muito menos na nossa região. Mas a questão pode ser abordada sob dois prismas: as causas apontadas para os acidentes mais graves com autocarros registados nas últimas décadas na Madeira; e a comparação da idade média das frotas que circulam na Região, no país e na Europa.
Nas últimas quatro décadas, ocorreram três acidentes graves com autocarros. Apenas um deles foi explicado parcialmente com um problema numa viatura já velha. Nos outros dois casos foi apontada falha humana, imputada ao motorista.
A 19 de Junho de 1984, um autocarro da ‘Transfunchal’ despistou-se ao descer a Rua Pedro José de Ornelas (zona da Pena) devido a uma falha de travões e foi embater contra uma árvore. Faleceram oito passageiros, incluindo duas crianças de 4 e 5 anos e também o motorista. O acidente provocou também 26 feridos, três dos quais graves. Poucos dias após o acidente, um relatório da Secretaria Regional dos Transportes apurou também o registo de "erros humanos imputáveis ao condutor", por supostamente circular a uma velocidade superior à recomendável, sobrecarregando com isso a caixa de velocidades.
A 23 de Dezembro de 2005, um autocarro de turismo, relativamente novo, tombou na rotunda do Laranjal, em São Vicente, provocando cinco mortos (todos italianos) e três feridos muito graves, entre os quais um bebé de nove meses. As vítimas eram passageiros do navio ‘Costa Clássica’ e realizavam um passeio pela ilha num autocarro da ‘Companhia de Carros de São Gonçalo’, do grupo ‘Horários do Funchal’. Apurou-se depois que o motorista circulava em excesso de velocidade e alcoolizado (2,46g/l). Foi despedido pela empresa e condenado em tribunal pelo crime de homicídio por negligência grosseira a quatro anos de prisão de pena efectiva.
A 17 de Abril de 2019, um autocarro de turismo da empresa SAM, com 6 anos, despistou-se no Caniço, provocando a morte de 29 pessoas (todos turistas alemães) e ainda 27 feridos. As perícias técnicas realizadas no âmbito do inquérito criminal não detectaram anomalias mecânicas ou técnicas na viatura, pelo que o Ministério Público justificou o acidente com erro do motorista, acusando-o da prática de 29 crimes de homicídio por negligência e 5 crimes de ofensa à integridade física por negligência. O caso não chegou a ter uma conclusão judicial, pois o arguido requereu instrução do processo e faleceu por doença antes que fosse apreciada a sua argumentação.
Quanto à questão da antiguidade das viaturas que asseguram os transportes públicos de passageiros na Madeira, é uma realidade que há empresas com frota envelhecida. Mas o problema não é geral. Um estudo recentemente publicado pela Associação dos Construtores Europeus de Automóveis (ACEA), com dados de 2022, indica que os autocarros que circulam nas estradas da União Europeia têm, em média, 12,5 anos. O país com frota mais envelhecida é a Grécia (18,8 anos) e a mais nova é a Áustria (4,4 anos). Em Portugal, os autocarros têm idade média de 14,1 anos.
Quanto à Madeira, à falta de indicadores globais sobre a idade dos cerca de 300 autocarros envolvidos nas carreiras urbanas e rurais, deitamos mão aos indicadores por empresa. No final de 2022, os autocarros da frota da ‘Horários do Funchal’ tinham, em média, de 9,5 anos. Já a média das viaturas da Rodoeste, no momento presente, deve “rondar os 20 anos”. Os próprios responsáveis da empresa assumem que a frota está muito gasta e antiga.
Por isso mesmo, foram adquiridos 127 autocarros mais recentes, que vão equipar tanto as empresas Siga Rodoeste e CAM-Companhia de Autocarros da Madeira (resultante da fusão entre Empresa de Automóveis do Caniço e a SAM). O primeiro lote destas viaturas chegou à Madeira no início deste mês e deve entrar ao serviço até final do primeiro semestre deste ano.
Em jeito de conclusão, podemos referir que parte da frota de autocarros da Madeira é mais antiga do que a média nacional e europeia. Por outro lado, a antiguidade das viaturas e o eventual mau estado dos equipamentos justifica apenas um terço dos acidentes graves ocorridos nas últimas décadas.