África foi importante para a revolução e para a abertura da Igreja
O bispo José Ornelas está convicto de que África foi importante para o 25 de Abril, devido à guerra colonial, mas também para a abertura da Igreja, face à visão mais avançada de muitos missionários.
"É que em África, o Concílio Vaticano II entrou muito mais rapidamente. Naquele momento, estava-se a nível mundial a aplicar o Concílio, e onde é que isso se deu mais? Nos países mais pobres, que aspiravam à independência, mais pobres e mais sofredores, debaixo de regimes ditatoriais", lembra o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que pouco tempo depois da revolução rumou a Moçambique.
Segundo o bispo, "as comunidades de base na América Latina fizeram tremer os regimes, concretamente no Brasil".
"Foi isso que passou também para a África portuguesa", considera.
"Aquilo que estamos a viver agora, falando de uma Igreja sinodal, uma Igreja de participação de leigos, uma Igreja na mão de leigos, etc, isso eu vi tudo acontecer em Moçambique, de 1974 a 1976", lembra, acrescentando que o bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto [que foi expulso do território], "foi uma das pessoas que mais trabalhou neste campo, mas os missionários vinham com uma ideia nova e, muito antes do 25 de Abril, transformaram a Igreja em Moçambique".
Por outro lado, "fruto disso são também aqueles estudantes que eles [os missionários] formaram nas missões e se tornaram líderes da Frelimo, quase todos. A primeira geração da Frelimo foi educada [por missionários], e não podia ser de outro modo, porque as escolas eram as missões que as desenvolviam, [tal como] escolas, hospitais".
Apesar desta proximidade, a Igreja não deixou de viver tempos difíceis em Moçambique depois da independência, com os carros e as casas das missões a serem "nacionalizadas". Mas, "os padres construíram cabanas e foram viver para o meio da gente, tanto que a Frelimo dizia: 'Saiu-nos o tiro ao contrário. Pensávamos que eles iam embora, ficaram mais próximos e mais difíceis de controlar'".
José Ornelas afirma que "nas missões lia-se até mais do que aqui [no continente]. Os missionários e as missionárias -- também os portugueses - eram gente muito mais à frente, porque davam-se conta da situação que lá [em África] existia".
"Sabia-se muito bem que a maioria dos missionários das congregações religiosas eram favoráveis à independência e detestavam este regime colonial que estava completamente fora daquilo que eram as correntes do tempo, do novo mundo que se queria criar", avança José Ornelas, não esquecendo que foram os padres de Burgos que denunciaram o massacre de Wiriyamu, e depois foram expulsos de Moçambique.
Para José Ornelas, "as colónias e a Igreja nas colónias foram elementos muito importantes, que devem ser estudados ulteriormente", referindo o recente livro dos jornalistas Manuel Vilas Boas e Amadeu Araújo -- Moçambique: da Colonização à Guerra Colonial - A Intervenção da Igreja Católica -, como um documento que "dá bem conta desta situação".
O facto de se estar em período pós-Concílio Vaticano II, acontecimento que "traz uma revolução copernicana dentro da forma de entender a Igreja", é também fulcral para a predisposição de, dentro da Igreja, na chamada Metrópole, também aparecer muita gente disposta a contestar o regime.
"Normalmente, começava-se por descrever a Igreja desde o Papa aos bispos, aos padres e depois, no fundo, o povo, sobre o qual exerciam a sua autoridade todos os outros.
O Concílio começa com uma outra coisa, começa pela noção de Povo de Deus. E isto parece uma brincadeira, mas não é. (...). É isto que vai dar origem às comunidades de base, que vai dar origem a uma nova conceção do ministério dos padres e dos bispos. Que vai recuperar a originária noção do que é liderança e autoridade dentro da Igreja", afirma José Ornelas.
O prelado recorda que "começa dentro da própria Igreja esta discussão", embora reconheça que "em Portugal demorou a chegar", acrescentando que "isto é a própria noção de Igreja que põe em causa o regime, para quem quisesse tomá-la a sério, e muita gente tomou".
E as experiências novas começaram a surgir: "nós cantávamos as canções do padre Fanhais, traduzíamos canções de fora que nos davam outra imagem de Igreja, eu ensinei nas barracas à volta de Lisboa, ali concretamente entre Alfragide o Bairro da Boavista, onde agora passa a CRIL, [dei] aulas com o método Paulo Freire, que não é simplesmente aprender a ler, é aprender a pensar. Era proibido [este método] e está na origem também da revolução e das comunidades de base, que eram comunidades de desenvolvimento de fé, e [também de] desenvolvimento e compromisso político", sublinha o bispo que lidera a hierarquia católica em Portugal.
E depois, havia a Ação Católica, "que foi perseguida pelo regime, mas foi daí que nasceu o laicado consciente" e, também nas universidades, "quanta gente, alguns dos quais ainda hoje estão na cena política, foram católicos empenhados na transformação da Igreja. Vem tudo disto".
"A Igreja, também aqui, foi promotora da transformação", acrescenta, para reforçar, o papel do Papa Paulo VI nesta mudança.
"Uma das pessoas que foi fundamental foi o Papa Paulo VI. Conhecia bem a situação portuguesa e o que ele fez foi nomear uma série de bispos" - a começar por António Ribeiro, que substituiu Manuel Cerejeira como patriarca de Lisboa -- que deram "um rosto novo à Igreja em Portugal".
E se, a par desta evolução no seio da Igreja, faz questão de afirmar que "a construção da democracia portuguesa teve um caminho de sucesso", não esquece o que o seu mentor dos tempos de estudante, o padre italiano Gastão Canova, lhe disse na tarde do próprio dia 25 de Abril de 1974: "Ornelas, [foi] bonito hoje. Mas, agora é que começa a dificuldade. Instaurar um regime democrático é razoável, é fazer uma revolução e virar as coisas, deitar abaixo a ditadura. Foi muito importante, mas agora trata-se de construir a democracia e viver em democracia e aí começam as dificuldades", embora "dificuldades bonitas".