O bom, o mau e o calvário
Pior do que gastar tempo e dinheiro num símbolo inclusivo, plural e laico, com o fino recorte de uma consciência ecológica reforçada, só mesmo fazer da mudança desse símbolo a primeira medida anunciada pelo novo governo. Podia ser só uma questão de gosto, de preferência gráfica, mas também há um simbolismo no ato de mudar um símbolo. Especialmente quando se eleva essa opção ao destaque da primeira medida governativa. Das duas uma: ou o governo tem as prioridades trocadas, ou então quis alinhar num exercício de nacionalismo revanchista absolutamente dispensável. Qualquer uma das hipóteses, é mau sinal.
O bom: Rui Barreto
Em política, a hora mais difícil é a da saída. Não pela carga emocional do momento, mas porque há uma tendência natural para prolongar aquilo que, há muito, deveria ter terminado. Das vagas de fundo às últimas oportunidades, passando pela promessa de um último mandato para terminar aquilo que se começou, tudo serve para adiar o momento final de um ciclo político. Só por isso, a decisão de Rui Barreto, há semanas comunicada e agora repisada em entrevista a este Diário, merece reconhecimento. O ainda líder do CDS percebeu que, com o fim da coligação, estaria profundamente condicionado na campanha política e, muitas vezes, obrigado a criticar um governo do qual tinha feito parte e a responder por medidas que teria, indiretamente, validado. Barreto fez bem em poupar-se a essa incoerência. Duvido se muitos o teriam feito. A decisão do líder centrista permite-lhe sair pela porta grande, podendo gabar-se de ter ganho todos os atos eleitorais a que se apresentou coligado e de ter sido o garante de uma estabilidade governativa que muitos julgavam impossível e a que o futuro dará ainda mais valor. Para além de coerente, Barreto foi inteligente. Salvaguardou o seu legado político e abriu a porta a José Manuel Rodrigues, que não tem a carga de ter feito parte do Governo e por isso estará mais livre para fazer um discurso de ataque ao PSD. Se a isso juntarmos os 4 anos de promoção pessoal à custa do lugar de Presidente da Assembleia, estou convencido que o resultado do CDS será uma das surpresas da noite eleitoral.
O mau: Livro “Identidade e Família”
Há duas dimensões a ter em conta na discussão do livro “Identidade e Família”, coordenado pelo Movimento Acção Ética e apresentado por Pedro Passos Coelho. Uma sobre o seu conteúdo, outra sobre o posicionamento político e ideológico que se lhe seguiu. Comecemos pelo conteúdo. A “assembleia de gente das catacumbas”, como lhes chamou Miguel Sousa Tavares, a pretexto da defesa da família, discorre sobre eutanásia, aborto, liberdade sexual e o papel da mulher na sociedade. Não há nada sobre a redução da carga fiscal sobre as famílias, muito pouco sobre as famílias que cuidam, em casa, de quem está doente e ainda menos sobre a conciliação entre a vida familiar e a profissional. Afinal, o livro que rouba a família para o título é, na verdade, um vago manifesto ultraconservador e tradicionalista sobre a sociedade. Depois, temos a política e a ideologia. Acicatadas pela presença de Passos Coelho no lançamento do livro, não tardaram as habituais sentenças de que todos os que são contra o aborto, a eutanásia e temas afins, são fascistas, sectários e, certamente, de extrema-direita. Sebastião Bugalho disse-o com especial acutilância. Há liberais contra o aborto e há gente de esquerda contra a eutanásia. Basta recordar a posição de António Guterres, insuspeito de ser fascista, sobre estas temáticas. Tudo reduzir a alinhamentos com a extrema-direita é torná-la líder da oposição em Portugal e convidar a que todos os que tenham opinião distinta sobre a eutanásia e o aborto lá depositem o seu voto. André Ventura agradece.
O calvário: Subsídio de Mobilidade e a IGF
“Volte para a semana. Pode ser que, até lá, a lei mude.” Foi a frase que muitos ouviram esta semana aos balcões do CTT, quando tentaram receber do Estado o adiantamento que somos obrigados a fazer para que se cumpra o princípio da continuidade territorial, que é como quem diz, o subsídio de mobilidade. Já o escrevi várias vezes e voltarei a fazê-lo sempre que aconteça. É chocante que o Estado, através da Inspeção Geral de Finanças, altere as regras de atribuição do subsídio de mobilidade em total desconsideração pela lei, muitas vezes afrontando-a frontalmente e, tendo em conta a velocidade com que as alterações são revertidas, sem grande segurança sobre a sua justiça ou necessidade. Não se tratam, só, de exigências ilegais, porque sem fundamento na lei, mas de uma atitude imoral, sem penalizações conhecidas a quem as decide, mas com impacto enorme na vida e no bolso de madeirenses e açorianos. Não nos bastava sermos chamados a adiantar dinheiro pelo Estado, como é o próprio Estado que cria um perverso sistema de lotaria legal, que torna cada ida aos CTT para receber o subsídio, um calvário com fim imprevisível. Ao contrário do que tenho lido, o regime do subsídio de mobilidade não precisa de revisão. Precisa, sim, de um Governo que tenha vontade de colocá-lo em prática, já que o anterior, ao nunca regulamentar a lei, encontrou maneira de suspender a revisão aprovada e por todos desejada.