Jourová lamenta não ter encontrado modelo económico para os media europeus
A vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência lamenta, em entrevista à Lusa, não ter encontrado um modelo económico para os media que evite que sejam "alvos fáceis" das pressões políticas e proprietários.
Vera Jourová termina hoje uma visita de dois dias a Portugal, no âmbito da sua "digressão pela democracia", onde tem encontros marcados com entidades nacionais e responsáveis institucionais portugueses.
"Devo dizer que estou desapontada por não termos conseguido encontrar formas de melhorar a situação económica dos media e estou ciente disso" e de que sem um modelo sustentável os órgãos de comunicação social "podem ser sempre alvos fáceis de pressões políticas, mas também de pressões dos proprietários", pelo que é preciso mais trabalho neste âmbito, sublinha.
Aliás, Jourová salienta que o que gostaria ter feito e não conseguiu foi encontrar um modelo económico para os media.
Instada a comentar o facto de o jornalismo tradicional estar ameaçado devido ao seu modelo económico, a vive-presidente da Comissão Europeia defende que é preciso "encontrar a forma de corrigir o mercado distorcido".
Há quem diga que devem ser os contribuintes a pagar, mas essa "é a forma mais fácil" e "eu nunca quis encontrar soluções fáceis", prossegue.
Primeiro, é preciso olhar o mercado para onde o dinheiro desapareceu: "todo o dinheiro desapareceu nos grandes sistemas digitais, os anunciantes escaparam para lá", aponta.
Por isso, "acho que é bom reabrir o debate sério sobre o imposto digital ['digital tax']", defende.
"Porque é que os contribuintes deveriam pagar por ele? Para manter os media vivos?", questiona, defendendo a necessidade de ser criado um sistema "justo".
Sublinhando que tem "boas relações" com as gigantes digitais, Jourová usa a comparação com uma autoestrada.
"Eles criaram para si a autoestrada, para grandes camiões que não pagam nada pelos danos. Não podemos continuar assim", reforça.
Em primeiro lugar, defende, é preciso "o modelo de alguma distribuição justa dos anunciantes", em segundo, pode ser o financiamento privado, que já existe em alguns projetos na União Europeia (UE) e Estados Unidos, mas está no início, relata.
O último recurso, "é o orçamento público".
Vera Jourová recorda que no European Media Freedom Act (Lei Europeia da Liberdade dos Media) tem um "forte capítulo" sobre o serviço público de media, o qual deve "ter financiamento público suficiente para sobreviver" durante este momento de crise económica.
Questionada sobre a ajuda estatal aos media em tempos de crise, a vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência classifica como "decididamente" uma "boa medida" para os manter vivos.
Aliás, no período da covid, a UE "desbloqueou as regras de ajudas estatais também para apoiar os media e recomendou que os Estados-membros" usassem esse apoio financeiro, o que alguns fizeram.
"Devo acrescentar que quando o orçamento público acompanha os meios de comunicação social, deve ser absolutamente transparente e não deve pretender comprar a sua gratidão", adverte.
Para os media "é bom receber dinheiro público", nomeadamente em tempos de crise financeira, "mas ao mesmo tempo há uma pressão" enorme para continuarem "independentes e fortes e manterem a integridade elevada", reconhece.
Jourová admite a sua "preocupação absoluta" com os media sob controlo político, já que numa situação de 'Orbanização' [uma referência ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán em que "não existe poder na sociedade", esse é o "caminho para o inferno".
A legislação europeia tem um artigo "muito proeminente" que diz que a pressão política tem de ser proibida ou deve parar e que "os principais valores que precisamos proteger é a independência dos media" quer de serviço público, quer comerciais, "eles têm que ser o poder forte na sociedade", insiste, sublinhando que o Media Freedom Act [Lei da Liberdade dos Media] "cria um novo tipo de rede de segurança".
"Queremos proteger os media, precisamos de protegê-los melhor", conclui.
Ambiente de medo e ansiedade na Europa é terreno fértil para manipulação
Para Vera Jourová, há na Europa um ambiente de ansiedade e incerteza, provocado pela guerra e pelo pós-covid, que é terreno fértil para a manipulação política em ano de eleições europeias. Aponta como uma das ameaças ao processo eleitoral europeu "o ambiente na sociedade", "um estado de espírito", que diz estar "cheio de medo, ansiedade e incerteza" devido à guerra na Ucrânia e ao pós-pandemia.
"A proximidade da guerra pode não ser sentida tão fortemente em Portugal, mas posso dizer que quanto mais para leste se vai, mais a guerra está no ar", afirma a comissária, que veio a Lisboa no âmbito de uma "digressão pela democracia" por vários países.
"Nesta situação, com uma manipulação pré-eleitoral altamente profissional e intensiva, é possível chegar às urnas, quem vai efetivamente votar, com base no medo e na ansiedade", com "uma grande dose de emoção", em vez de com um "pensamento racional virado para o futuro" que tornaria as pessoas "menos alvo das promessas vãs dos partidos extremistas".
A comissária não espera, todavia, que as sondagens que apontam para que as forças de extrema-direita consigam eleger metade dos deputados ao Parlamento Europeu se confirmem, sublinhando que "antes das eleições é sempre um pouco mais tenso que depois".
"Não terão metade. Eu diria que será muito menos", afirma. Mas, sublinha, "quando se obtém muito poder nas eleições, é preciso que os políticos sintam que têm responsabilidades e que não podem continuar a repetir as promessas populistas que eles próprios sabem que não podem cumprir".
Vera Jourová considera, por outro lado, que a União Europeia (EU) está hoje bem preparada para lidar com a desinformação, graças à Lei dos Serviços Digitais (Digital Servisses Act), que obriga as grandes plataformas digitais a "assumir responsabilidade" e impedir a divulgação de desinformação, discurso de ódio e conteúdos violentos, e o Código de Conduta Contra a Desinformação, que envolve "um amplo conjunto de pessoas e entidades" na verificação de factos.
"Queremos que os eleitores possam fazer uma escolha. Não queremos dizer às pessoas que não acreditem, deixem-nas acreditar, mas gostaríamos que as pessoas tivessem uma escolha, e também que vissem os factos", explica.
Europa está no meio de uma guerra de informação
A vice-presidente da CE acredita que a Europa "está no meio de uma guerra de informação" e que não pode "ser ingénua" e deixar de reagir, combatendo a desinformação.
"Atualmente, na Europa, estamos no meio de uma guerra de informação. Temos de pensar se não seremos demasiado ingénuos para não reagir", diz Vera Jourová, comissária dos Valores e da Transparência, em entrevista à Lusa, em Lisboa.
A comissária respondia a uma pergunta sobre a decisão, há dois anos, de proibir os 'media' estatais russos Sputnik e Rússia Today, decisão criticada na altura como um obstáculo à liberdade de expressão.
"Dei o meu melhor para explicar por que razão tínhamos de o fazer, que se tratava apenas de mais uma máquina de guerra de Putin", afirma.
Vera Jourová refere um exemplo da Checoslováquia, onde nasceu: "Tivemos um estudante que se chamava Jan Palach e que se imolou em protesto contra a ocupação russa em 1968.
E deixou uma carta, uma lista de tarefas para aqueles que ficaram impressionados com o seu horrível sacrifício. Nessa carta havia dois pontos principais: o primeiro era proibir os meios de comunicação russos. E o segundo era proibir a censura", relata.
"Não vejo nenhuma contradição nisso", sublinha.
A comissária lamenta todavia que a sanção àqueles 'media' não seja 100% eficaz, e diz que lhe é "doloroso ver, por exemplo, no YouTube, como algumas narrativas são difundidas, por exemplo em África, pela Russia Today e pela Sputnik".
Aqueles meios, insiste, "utilizam as palavras como arma", razão pela qual foram colocados na lista de sanções.
Outra medida tomada, aponta, foi a criação de um programa de apoio a jornalistas russos exilados na UE.
"Temos várias centenas deles e estou a apoiá-los através de um programa específico, de um projeto específico, a que chamei, de forma provocatória, Rádio Rússia Livre.
Considero que é a coisa certa a fazer. Permitir que os jornalistas russos exilados continuem o seu trabalho na UE e estamos a tentar conseguir isso", afirma.
Sobre a interferência russa na Europa, a comissária explica que há três condições que facilitam essa intromissão: a proximidade histórica e linguística, a presença de partidos predispostos à propaganda russa e a falta de literacia mediática e digital das populações.
"Tenho a certeza de que o Sr. Putin tem uma análise muito boa sobre onde investir. Ele não tem dinheiro suficiente para todas as aventuras de guerra, por isso tem de ter um bom objetivo", afirma.
Desinformação assente em IA "é o maior desafio"
A vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência considera ainda que a desinformação assente em inteligência artificial (IA) "é o maior desafio" e que esta tecnologia é incontornável para os media.
Questionada sobre o facto da desinformação ser eficaz numa altura em que as pessoas obtêm a informação de maneira superficial, Jourová afirma que "o maior desafio é a desinformação que se baseia na inteligência artificial ou utiliza a inteligência artificial".
"Ainda há alguns anos vi campanhas de desinformação reais e direcionadas a serem produzidas por pessoas reais, pelo exército de 'trolls' em São Petersburgo," refere, mas a tecnologia desenvolveu-se bastante desde então.
Agora, "é tão fácil usar a IA não só para produzi-lo, para produzir os efeitos, mas também para divulgá-lo pelo espaço digital" e as pessoas estão a ser impactadas, lendo e vendo desinformação a uma "velocidade luz" e "é isso que eu temo", admite Vera Jourová, que não se vai recandidatar a um novo mandato na Comissão Europeia.
E é "aqui que tentamos impedir isso, é por isso que apreciei que os atores digitais das maiores plataformas tenham assinado um compromisso de que irão detetar proativamente a produção de IA/'deepfakes'" e que estas serão rotuladas e removidas, sublinha.
"Acho que veremos muito isso ou ouviremos sobre casos de 'deepfakes' sendo removidas 10 dias antes das eleições" europeias, prevê a vice-presidente da Comissão Europeia.
Instada a comentar como a tecnologia pode ser muito criativa a contornar barreiras, Vera Jourová sublinha que ainda se trata de "criatividade humana", embora muito em breve preveja que a IA deixe de precisar de pessoas para o fazer.
"Não quero parecer apocalíptica, mas a desinformação espalhada pela IA é algo que realmente temo e algo que ainda podemos resolver com um forte compromisso dos tecnólogos - eles são os únicos que têm uma hipótese de impedir isso" -, uma vez que são eles que estão a desenvolver a tecnologia de inteligência artificial para detetar imediatamente a produção de IA.
"Esqueça, os seres humanos já não o conseguem fazer mais", daí a importância do seu papel, prossegue, referindo que recebeu um "forte compromisso" dos partidos políticos de que "irão resistir à tentação de usar 'deepfakes' em campanhas políticas".
"Pedi aos partidos europeus que também pedissem aos partidos políticos nacionais que realizassem campanhas decentes e não manipuladoras. Sou ingénua? Espero que não, mas gostaria de fazer, ainda no atual mandato na Comissão, algures em setembro, uma avaliação olhando para trás", partilha.
E aí "veremos se vale a pena jogar" de maneira justa, mas isso só "saberemos" em outubro.
Instada a comentar as declarações do professor catedrático do IST Arlindo Oliveira, em entrevista recente à Lusa, que afirmou ter menos medo da eficácia da desinformação do que da ineficácia da informação, uma vez que atualmente é mais difícil fazer as pessoas mudarem de opinião, a vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência salienta ser "muito apropriado dizê-lo".
"Os dados dizem-nos que não é altura de subestimar a desinformação e a interferência estrangeira", aponta.
Vera Jourová esteve na Letónia esta semana, perto da fronteira russa: "Imagine ter um terço da população de língua russa, uma incrível pressão e o ataque permanente ao espaço de informação por parte da Rússia".
Uma das "tendências perigosas é que, quanto menor a confiança [nos media], maior o número de leitores de todas as notícias que se espalham pelas plataformas 'online', que são exatamente o lugar, a autoestrada para os conteúdos problemáticos, prejudiciais e manipuladores", sublinha.
"Tenho sempre uma mensagem para os media tradicionais: têm que aparecer onde têm leitores" e isso, além da digitalização, inclui ainda "algum tipo de novas sinergias com a IA".
Já que, "caso contrário, não sobreviverão", remata.