Será que o bispo do Funchal é autor de um livro “saudosista” apresentado por Passos Coelho?
O padre José Luís Rodrigues publicou, esta manhã, um texto na sua página no Facebook onde analisa de forma crítica o livro ‘Identidade e Família’, apresentado na passada segunda-feira em Lisboa pelo ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho e que promove uma visão conservadora da instituição familiar. O pároco de São Roque e São José refere que entre os 22 autores de textos que compõem a obra, no “meio da tralha saída do armário pejado de naftalina”, encontrou duas figuras ligadas à Igreja Católica, os bispos Manuel Clemente, bispo emérito de Lisboa, e Nuno Brás, bispo no Funchal, os quais define como “dois timoneiros do conservadorismo da Igreja Portuguesa da actualidade”. E lamenta “o pensamento desta gente”, que, com “argumentos puramente anacrónicos” defende “a família tradicional como o único caminho para ser feliz e que fora disso é a perdição total”. Será mesmo assim?
O livro ‘Identidade e Família’ foi lançado há um mês pela editora ‘Oficina do Livro’. Já se encontra à venda na Madeira, em livrarias como a Fnac. Mas só no início desta semana foi apresentado publicamente, precisamente por Pedro Passos Coelho e com outros políticos de direita na plateia, como foi o caso do líder do Chega, André Ventura.
O padre José Luís refere sobre os autores deste livro: “Todos têm um pensamento negativo sobre a sociedade actual. Há como que um certo ódio à autonomia individual. A vida de hoje está mergulhada na subjetividade, por isso, está perdida, arde nas labaredas do inferno porque recusa o modelo tradicional da família que estes senhores, únicos detentores da verdade, defendem”.
Ora, o capítulo com seis páginas assinado pelo bispo Nuno Brás começa precisamente por assinalar que “a família parece ter deixado de ser uma prioridade da nossa sociedade ocidental contemporânea” e fica “hoje, claramente, a perder frente ao subjectivismo e aos ‘direitos do eu’: o direito suibjectivo à felicidade; o direito subjectivo ao prazer; o direito subjectivo à realização profissional; e tantos outros”. “Do mesmo modo, a família fica a perder frente às realidades ‘maiores’: é facilmente sacrificada à economia; é sacrificada aos desígnios políticos; é sacrificada aos ganhos das maquiavélicas relações internacionais; é sacrificada aos interesses da imposição universal da ‘globalização’ e da ‘nova ordem mundial’”, prossegue o prelado.
O conhecido padre madeirense, que, ao longo dos anos, já apresentou outras posições críticas face à hierarquia da Igreja, nota que os bispos Manuel Clemente e Nuno Brás “seguram-se no guarda-chuva chamado Papa Francisco” para defender as suas ideias tradicionalistas sobre a família. De facto, o texto do bispo do Funchal apoia-se largamente no livro ‘A alegria do amor – sobre o Amor na Família’, escrito pelo Sumo Pontífice em 2016, apresentando-se profusas citações do mesmo.
José Luís Rodrigues nota que estas “cabeças tradicionalistas da igreja” têm “uma visão negativa dos multifacetados modelos de família que existem hoje”. “Para esta gente o amor só tem um caminho. A educação das crianças também. A eutanásia e o aborto são o diabo à solta.
Há uma desconsideração soberba diante das mulheres, que foram criadas para servir o homem, parirem e amamentarem com terna passividade. Só aqui é que há amor e felicidade. Famílias monoparentais, uniões de facto (que são hoje provavelmente a maioria), casais gays, recasados em segundas ou mais núpcias e todas as formas que a autonomia pessoal determinar, está tudo errado, são infelizes e geradores de infelicidade. Tão pobre este negativismo e profundamente injusta esta visão, diante de homens e mulheres que se sacrificam todos os dias para criarem e educarem filhos que às vezes não são seus, mas que os acolheram com grande amor”, avança o pároco de São Roque e São José.
Na busca de uma definição da palavra ‘família’, o bispo do Funchal apoia-se numa passagem do mencionado livro do Papa Francisco: “Só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Devemos reconhecer a grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa regra de vida, mas as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplistamente equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade”. A este propósito, Nuno Brás comenta: “Não se trata de nos encontrarmos prisioneiros de modelos familiares do passado, incapazes de responder e de expressar o bem familiar para o nosso tempo. Trata-se antes de reconhecer aquilo que permanece e é constante em toda a diversidade de expressões que a família adquiriu e pode adquirir, aquilo que encontramos em todas as sociedade humanas de todos os tempos, e que ainda hoje se mostra essencial para o nosso viver”.
O líder da Igreja Católica da Madeira aponta depois as principais dificuldades da vida familiar contemporânea: o “individualismo exagerado”; uma noção de liberdade que entende que “cada um julga como lhe parece (….), como se tudo fosse igual e tudo se devesse permitir”; a “cultura do provisório” de “pessoas que passam rapidamente de uma relação afectiva para outra”; “uma concepção puramente emotiva e romântica do amor”; o “medo de perder a liberdade e a autonomia”, e a “percepção do matrimónio como realidade meramente institucional e burocrática”.
Nuno Brás termina o seu texto a defender “uma verdadeira batalha cultural” para colocar “de novo a família como centro, base, raiz do viver humano, aceitando a sua realidade poliédrica, mas (ao mesmo tempo) recusando tudo quanto coloca em causa a sua existência”. Uma vertente dessa “mudança cultural” deve passar pela actuação do Estado, que deve “criar as condições legislativas e laborais para garantir o futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu projecto de formar uma família”. O bispo do Funchal prevê que surjam opositores a essa “batalha cultural”, que classifica como “Frankenstein” que vêem ser colocada “em causa a sua ‘nova ordem mundial’.
Em resumo, é verdade que o bispo do Funchal é coautor de um livro que defende um revalorização da família tradicional e que deixa claro que "as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplistamente equiparadas ao matrimónio".