O ano que mudou a adolescência
Nem sei se tive a noção de que foi aquele dinheiro dos bordados que nos permitiu respirar e viver com mais conforto
O ano em que a minha mãe ganhou 80 contos por ser agente de bordados mudou a minha adolescência. Os 400 euros, em valores actuais, duraram pouco debaixo do forro da gaveta da cómoda. Uns dias depois uns senhores vieram instalar o móvel da televisão, três módulos de prateleiras, gavetas e portas onde a minha mãe arrumou o serviço de porcelana e os copos de cristal e eu fiquei com uma prateleira para os livros. Também fomos comprar um conjunto de mesa e cadeiras em vime onde, daí em diante, a minha mãe passou a sentar-se para bordar.
O fundo de caixa foi tão bem gerido que, por ser perto da Páscoa, ficou algum para umas sapatilhas Arthur Ash, umas Mako Jeans, mais um batôm caro da perfumaria Lotus. Todos estes nomes e marcas são insignificantes às pessoas de agora, mas garantiam a quem as usava em 1987 a dignidade suficiente para ser aceite em qualquer grupo. A minha sorte calhou com a viagem de finalistas do meu irmão a Benidorm e, quando voltei das férias da Páscoa, tinha uma pulseira de couro no braço e uma t-shirt bonita. E podia dizer que eram de Espanha e de Ceuta, do estrangeiro e isso era o mais importante.
Não sei como é que a minha mãe conseguiu comprar tantas coisas com aquele dinheiro, mas esse era o seu maior talento: gerir a casa e as nossas vidas como se fosse simples ou fácil. Lembro-me que, como fazia sempre, foi entregar bordados na quarta-feira antes da Páscoa e trouxe amêndoas e torrões de açúcar, mas pela primeira vez não foi preciso contar. A mudança, tão alheia do Laranjal da minha infância, estava a subir pela encosta e começava a entrar pelas nossas casas. Eu podia orgulhar-me do móvel da sala, das roupas mais modernas e isso foi quanto bastou para ganhar confiança.
A adolescente estranha e cheia de vergonhas – das pernas, do peso, das saias feitas em casa, do tom de pele e da cor dos olhos – abria caminho para uma jovem que lia muito e queria ser tal e qual como nos filmes, a heroína dos jeans surrados, do blusão de cabedal, dona de si e que se imaginava em aventuras mundo além, o mais longe possível do Laranjal. É mais ou menos o que se quer ser aos 16 anos, quando se quer viver de um modo muito diferente dos nossos pais e de todos os adultos que conhecemos. Eu, pelo menos, quis muito sem perceber que era a forma como o meu pai e a minha mãe viviam que me permitia ter sonhos.
Nem sei se tive a noção de que foi aquele dinheiro dos bordados que nos permitiu respirar e viver com mais conforto. Algumas vezes fui injusta e lamentei ter de atravessar a cidade com sacos pesados nas mãos e morri de vergonha sempre que me deixou à porta das lojas, a guardar os embrulhos. Ou quando regateou o preço com aquela frase: “então não faz uma diferença?”. E nas ocasiões em que encontrou defeitos em sapatos e vestidos apenas por não ter o dinheiro para comprar ou que me ameaçou com castigos porque estava contrariada e zangada por ser a única a vestir aquelas roupas, a ter aqueles cadernos e os livros usados do meu irmão.
A ironia de tudo isto é que foi este esforço que me permitiu seguir caminho e começou com aqueles 80 contos.