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Crónicas

Filhos de um sonho

Eu cresci a ouvir esta história. `A minha mãe contava-me como se fosse uma ficção, como se estivesse a ler, mas dizia-me que podia ser eu lá mais à frente, no futuro, quando fosse grande e dona da minha vida

A minha mãe imaginou uma filha diferente quando me trouxe do hospital já com as orelhas furadas por causa da gorjeta de 10 escudos a uma senhora que trabalhava no berçário. Vim menina, morena e com poucos atributos de valor no início dos anos 70. E, embora não fosse como esperava, a dona Celina começou a imaginar o futuro daquela menina, que se a sorte o permitisse iria cumprir todos os sonhos.

O meu caminho não seria travado por ela, uma mulher como tantas outras, que ouvia a radionovela e bordava e tinha ficado por ali mesmo, no limite máximo da ambição das pessoas do Laranjal. Os planos para a bebé que dormia no cestinho de canas eram outros, que se tivesse cabeça seria professora e talvez ficasse a morar naquela casa ou fizesse outra, mais bonita, com mobília de mogno e um laguinho de peixes vermelhos com repuxo. E talvez tivesse um carro, quem sabia se não chegava a doutora.

Eu cresci a ouvir esta história. A minha mãe contava-me como se fosse uma ficção, como se estivesse a ler, mas dizia-me que podia ser eu lá mais à frente, no futuro, quando fosse grande e dona da minha vida. Às vezes ia casar com um médico, outras vezes podia ser advogada ou engenheira. A casa teria dois andares e uma escada por dentro tal e qual como a das telenovelas, era querer e estudar muito. Se fosse a melhor tinha notas e com as notas podia ir até ao fim do mundo.

Aquela senhora, que de longe era mais uma das muitas que se sentavam no autocarro e resistiam horas na fila das matrículas da escola, defendia-me de todos os avanços que pudessem desviar do plano. Dos avisos das mulheres dos bordados tão preocupadas com o dinheiro deitado fora: “daqui a dias larga os estudos para namorar” ou “vira as costas à família depois do curso” ou “pode perder o juízo de tanto estudar e ler”. O conselho vinha depois, que para as mulheres o 2º ano do ciclo e um curso de corte e costura chegava.

A filha podia não ser tal e qual como imaginara, viera assim gordinha, desajeitada, tímida e teimosa, mas tinha boa memória e os professores pareciam satisfeitos. E eu cresci a ouvi-la dizer que “se tiver boa cabeça vai estudar”. Também me dizia que gostava que fosse mais arrumada, boa cozinheira e menos preguiçosa e castigava-me quando chegava a casa com um 12 e não se impressionava com um 16. Eu achava injusto sem perceber que a minha mãe tinha posto tudo no meu futuro. Por mim enfrentou os preconceitos, as minhas tias, a descrença dos vizinhos e a nossa falta de dinheiro.

Aguentou desconsiderações, horas e horas nas filas para matricular, para comprar livros sem nunca desistir ou ceder, mas o sacrifício não foi apenas pela instrução, por um curso. A minha mãe deu-me esperança, disse-me que a vida era minha e que o melhor caminho era ter planos, sonhos, ideias para o futuro. E disse-me tudo isso nos anos 70 e 80, num tempo de pobreza, de inflação, de férias no estrangeiro só para os ricos e estudos superiores limitados às elites. E ela tinha só a quarta classe de adultos.