Ter visto do Tribunal de Contas significa que o processo de contratação cumpre todos os preceitos legais?
Na segunda-feira da semana passada, Alberto João Jardim foi à RTP-Madeira, para comentar a situação política actual. Nesse âmbito, afirmou que, enquanto presidente do Governo Regional, ficava sossegado quando uma contratação obtinha o visto prévio do Tribunal de Contas. Mas, obter o visto do Tribunal de Contas, prévio ou concomitante, é sinónimo de que todos os preceitos legais foram cumpridos e de que não há responsabilidade contratual, crime ou cível que possam ser assacadas aos intervenientes, institucionais ou pessoas singulares?
Alberto João Jardim interveio numa altura em que a situação política estava menos definida, do que actualmente, e em que não se colocava dúvidas sobre os procedimentos contratuais para a construção do novo Hospital Central da Madeira.
A análise do antigo presidente do Governo Regional, na questão relacionada com os vistos do Tribunal de Contas é de princípio e não sofre alterações com os factos, entretanto, vindos a público.
“Todas aquelas obras, que foram adjudicadas, foram vistas [visadas] pelo Tribunal de Contas. Portanto, têm o ámen de um magistrado. Então, não é isto que está em causa (...).”
“Uma das questões, que me sossegavam, quando eu era presidente do Governo era o visto do Tribunal de Contas: está visado, foi fiscalizado pela entidade judicial. Agora, o Tribunal de Contas põe o visto, a seguir, vem uma outra entidade judicial, não diz que aquilo está errado. O que diz é outra coisa: esta adjudicação está certa, mas ao caber à empresa tal, a entidade policial desconfia que é um favor feito ao senhor A e ao senhor B e ao senhor C. Então provem isso. Isto é o que tem de ser provado.”
Desde logo, a afirmação tem um aspecto ‘La Palice’ para os regimes democráticos. Cabe sempre a quem acusa provar os factos e não aos acusados provarem que as acusações não são verdadeiras. Mas vejamos a garantia do cumprimento do preceituado, através de um visto do Tribunal de Contas.
Em síntese, de acordo com a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, artigo 44.º, “a fiscalização prévia tem por fim verificar se os actos, contratos ou outros instrumentos geradores de despesa ou representativos de responsabilidades financeiras directas ou indirectas estão conformes às leis em vigor e se os respectivos encargos têm cabimento em verba orçamental própria” e, acrescenta a Lei, “nos instrumentos geradores de dívida pública, a fiscalização prévia tem por fim verificar, designadamente, a observância dos limites e sublimites de endividamento e as respectivas finalidades, estabelecidas pela Assembleia da República”.
O mesmo artigo explica quando é que o visto prévio deve de ser negado pelo Tribunal de Contas: “Constitui fundamento da recusa do visto a desconformidade dos actos, contratos e demais instrumentos referidos com as leis em vigor que implique: a) Nulidade; b) Encargos sem cabimento em verba orçamental própria ou violação direta de normas financeiras; c) Ilegalidade que altere ou possa alterar o respectivo resultado financeiro.”
No entanto, há casos de desconformidade com a lei em que o visto pode, na mesma ser concedido. “Nos casos previstos na alínea c) do número anterior, o Tribunal, em decisão fundamentada, pode conceder o visto e fazer recomendações aos serviços e organismos no sentido de suprir ou evitar no futuro tais ilegalidades.”
Assim, desde logo, a afirmação de Alberto João Jardim enferma de um erro, ao considerar que o visto diz estar tudo bem com a contratação.
Além disso, quando é afirmada a verificação da conformidade com a lei, há uma que sobressai: Código dos Contratos Públicos (CCP) – DL n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, na versão mais recente do DL n.º 54/2023, de 14 de Julho.
O CCP é uma espécie de bíblia da contratação, que é, em simultâneo, um conjunto de obrigações a seguir e uma espécie de guia/roteiro de todo o processo contratual. Apesar disso, há muitas zonas cinzentas, de fronteira entre a legalidade e a ilegalidade, geradores de responsabilidades sancionatórias e/ou reintegratórias. Junta-se-lhe um conjunto de disposições legais que assentam em interpretações, mas que são de difícil aplicação generalizada e/ou concreta.
Um desses casos é o do fraccionamento. Um exemplo meramente a título ilustrativo e não real. Imaginemos uma entidade que pretende construir uma estrada de dois quilómetros, pelo valor global de um milhão de euros. Em vez de um concurso público, pode realizar vários procedimentos por consulta prévia, convidando sempre as mesmas entidades a apresentarem propostas. Pode convidar, por absurdo, um entidade da Madeira e as demais de Braga. No final, haverá dois, três, quatro contratos para empreitadas de obras públicas, por valores que nem de visto prévio necessitam. Só uma auditoria subsequente poderá detectar a situação e, eventualmente, a atribuição de responsabilidade financeiras.
Outro exemplo possível é o de concursos públicos por lotes. Desde que cada lote/contrato seja inferior a 950 mil euros (multiplicados por 0,35 na Madeira) a execução pode avançar, mesmo antes do visto ser emitido, podendo, depois, vir a ser concedido ou recusado, com as consequências a se aplicarem a partir da data de notificação. Dependendo do que estiver em causa, pode dar-se o facto de, quando houver decisão, o contrato estar todo executado.
A análise para concessão de visto prévio do Tribunal de Contas não é uma investigação forense, não analisa indícios de crimes. É uma análise muito baseada no cumprimento de formalidades, que, ao terem sido definidas, pretenderam promover a sã concorrência, regras orçamentais e, aí sim (legislação), a prática de eventuais crimes. Mas não há investigação criminal. Aliás, é por essa razão que os relatórios de auditorias são enviados ao Ministério Público junto do Tribunal de Contas para que, no caso de haver indícios de crime, eles possam ser investigados e, eventualmente, acabarem em julgamento.
Como nota acessória deixamos uma pequena explicação sobre algumas possibilidades de manipulação de procedimentos concursais. A primeira forma é o recurso injustificado ao instituto da prévia qualificação, sem uma necessidade real. A qualificação da capacidade técnica e financeira é fundamental para garantir a boa execução de muitos contratos, mas quando não realmente necessária visa excluir concorrência.
Outra das formas, quando não há prévia qualificação, é a definição de requisitos técnicos que só as empresas, que interessam ganhar, possam cumprir, havendo sempre o cuidado de os tentar justificar, para evitar darem origem à recusa de visto, ou, havendo reparos, por parte do Tribunal de Contas, este os releve.
Outra forma é atrasar o lançamento de concurso para obras ou serviços que têm de ser prestados impreterivelmente até determinada data. Nesse caso, independentemente do valor, pode haver recurso ao ajuste directo: ou por ser demasiado tarde para lançar concurso ou porque o lançado foi mal feito e ficou deserto ou porque algum concorrente contestou, em tribunal Administrativo, o resultado e não é possível esperar pelo resultado da contestação.
Muitas outras formas existem de viciar procedimentos concursais e dar-lhes aparência de total legalidade. O essencial, para não esbarrar numa posição inultrapassável do Tribunal de Contas é não recorrer mais do que uma vez a um expediente já detectado anteriormente pelo Tribunal para a mesma entidade adjudicante. Quando assim é, evocando o interesse público e o facto de ser a primeira vez, o Tribunal de Contas tende a relevar (deixar passar e não penalizar).
Assim, em síntese, é verdade que o visto do Tribunal de Contas dá garantias de terem sido seguidas e cumpridas as regras fundamentais da contratação pública, mas não todas e menos ainda violações de natureza criminal complexa, que não são investigadas por aquele Tribunal. Por isso, afirmar que o Visto do Tribunal de Contas retira qualquer dúvida de ilegalidade é uma afirmação falsa.