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Arquitectura e poder

É a arquitectura – com A grande – que alimenta a memória que temos do passado

Arquitectura e poder estão relacionados desde esse passado longínquo em que a humanidade construiu, nas primeiras cidades, os seus palácios, templos e monumentos funerários. Do tempo dos faraós aos nossos dias, é consabida a devoção que todos os autocratas devotaram à obra de ostentação e aparato. Os ditadores europeus do século XX são herdeiros dessa megalómana tradição: Mussolini quis ver gravado na fachada do imponente Palazzo della Civiltà Italiana o excerto de um discurso seu; para servir de palco às grandes encenações de Hitler, Speer projectou em Nuremberga a Zeppelinhaupttribüne; e Estaline fez do metro de Moscovo obra de homenagem à sua pessoa. As democracias não constituíram excepção e, para prová-lo, basta pensar na Brasília de Juscelino Kubitschek e nas grandes obras que Mitterrand promoveu na Paris de finais do século XX.

Esta saga continua viva em pleno século XXI. As reformas legislativas ou as reformas dos serviços que o Estado presta são, por assim dizer, imateriais e, na maioria dos casos, as suas consequências levam tempo a reflectir-se no quotidiano dos cidadãos. Nada se compara ao prestígio e visibilidade – os deslumbrados chegam a falar em imortalidade – que a obra feita confere a quem a manda fazer. Se a isto acrescentarmos os votos populares que daí podem advir e as benesses a distribuir por correligionários e lacaios, temos confeccionado o mais nutritivo de todos os caldos. Não admira, pois, o apetite que a maioria dos políticos manifesta pela obra pública.

Para a comunidade, porém, os resultados nem sempre são os melhores. A pressa de executar sobrepõe-se à demora que o concurso bem planeado pressupõe: por vezes é preciso escolher, entre muitas, a melhor solução, a mais económica, a mais eficaz, a mais elegante. Pior: a existência de um concurso faz supor que a melhor solução saiu de outra cabeça que não a do político que promoveu a obra – por exemplo, da cabeça de um arquitecto... Mas não é o processo de encomenda o mais importante.  O mais importante é a formação ética e cultural de quem encomenda.

O caso do Funchal é paradigmático: pensemos na cidade que viu nascer o Mercado dos Lavradores, o Liceu Jaime Moniz, ou o Palácio da Justiça. Será possível compará-lo com o Funchal dos túneis, viadutos, ribeiras betonadas e tetrápodes? Se exceptuarmos o restauro de monumentos, não se vê hoje na capital do arquipélago obra de arquitectura de iniciativa pública que possa ombrear com qualquer um dos edifícios que mencionei. É a arquitectura – com A grande – que alimenta a memória que temos do passado. Todo o negócio obscuro ou duvidoso que acompanhou a sua execução é esquecido. Dos tempos de hoje, o que sobrará para o futuro? Nem sequer, talvez, a memória vaga de alguns políticos e empresários a braços com a justiça.