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Crónicas

A janela para o mundo

A nossa vida haveria de lá chegar, aos sofás, ao quadro grande para enfeitar a parede, ao conforto da alcatifa no chão e à mesa de centro em vidro e metal cromado

A televisão a preto e branco chegou à minha casa num sábado à hora de almoço. O meu pai trouxe-a das compras numa caixa volumosa quando ainda não havia uma sala para a instalar. A minha mãe desesperou com a vergonha, a nossa casa não condizia com o luxo, mas depois chamaram o Marçal da Marconi, puseram uma antena grande no terraço e arranjaram um poiso provisório no quarto de engomar.

Ficava de esquina num quarto apertado, mesmo ao lado da porta que dava para o lagar, e as cadeiras de praia - as mesmas que a minha mãe usava para bordar no quintal - faziam vincos nas pernas, mas estavámos nos anos 70 e as pessoas sabiam que, todos os dias, tinham de fazer escolhas. O meu pai escolheu comprar o televisor Philips antes da sala com sofás.

A nossa vida haveria de lá chegar, aos sofás, ao quadro grande para enfeitar a parede, ao conforto da alcatifa no chão e à mesa de centro em vidro e metal cromado. As minhas tias debateram o assunto como faziam a tudo, não se dava um passo, nem se comprava um vestido ou uns sapatos sem antes correr a opinião daquele conselho de mulheres de meia idade, com óculos e ideias a propósito do que era certo ou errado.

Eu, claro, fiquei do lado do meu pai, mas tinha seis anos e interesse no caso, sobretudo nos desenhos animados. A Heidi e o filme da sessão da tarde ao domingo continuei a ir ver a casa da minha tia Alice. Os meus primos tinham mais tempo e paciência e liam-me as legendas para perceber a história. E foi assim que percebi que nos filmes havia o bom, o mau e, quase sempre, uma rapariga a dividir o coração dos dois.

Os meus primos também me explicaram o que era a Volta a França, os Jogos Olímpicos e as notícias que davam todos os dias à noite no Telejornal. Lembro-me de tentar acompanhar aquele rol de pessoas. “Quem é este? É o presidente da América. E este? É o Xá do Irão. E aquele? É o Joaquim Agostinho, que é ciclista e é português. Agora é o Ramalho Eanes, o nosso Presidente da República e tu fazes muitas perguntas”.

A televisão ensinou-me que havia um problema chamado custo de vida e que o Presidente da República não tinha descanso por causa dos governos que demoravam pouco em funções. A instabilidade política vinha antes das notícias da revolução do Irão e dos atentados na Irlanda do Norte ou dos desfiles da tropas soviéticas em Moscovo. Depois dava o tempo, mudava para a publicidade e começava a telenovela.

Mas nessa altura a minha mãe já me tinha metido na cama, que a telenovela brasileira era muito descarada e eu tinha só seis anos, fazia muitas perguntas e não gostava de dormir no escuro. E apesar de tudo continuava do lado do meu pai, a televisão a preto e branco era o melhor que nos tinha acontecido.

Era, naquele fim dos anos 70, uma janela para o mundo na curva de caminho onde, todos os dias à tarde, o senhor José ‘Folha’, com seus cães, atravessava o caminho com um molho de erva às costas.