Companhias aéreas já ameaçaram deixar de ligar a Madeira ao continente devido ao subsídio de mobilidade?
A mobilidade, tanto aérea, como marítima, é um tema recorrente nas propostas dos vários partidos políticos madeirenses sempre que temos algum acto eleitoral de âmbito regional ou nacional.
Tal não tem sido excepção, da esquerda à direita, nas propostas das várias candidaturas à Assembleia da República, pelo círculo eleitoral da Madeira, tendo em conta a eleição que acontece a 10 de Março.
Muitos dos cabeças-de-lista, no período de pré-campanha em curso, têm colocado os problemas da mobilidade na sua agenda mediática, dando conta das soluções ou do que contam fazer caso ganhem um lugar em São Bento. Foi o caso de Paulo Cafôfo, candidato pelo PS-Madeira.
Em entrevista à RTP-Madeira e à Antena 1 Madeira, na passada terça-feira e quarta-feira, respectivamente, o também líder dos socialistas madeirenses abordou a questão da mobilidade aérea e defendeu que os madeirenses deviam pagar apenas os 86 euros pela viagem entre o Funchal e o continente português, conforme consagrado na legislação afecta ao subsídio de mobilidade em vigor. Na ocasião, Cafôfo afirmou que companhias como a easyJet e a Ryanair já haviam ameaçado sair da rota Madeira – Lisboa caso fossem elas a assumir os custos da implementação dessa medida.
Mas será verdade que a easyjet e a Ryanair já fizeram essa ameaça? É isso que vamos procurar esclarecer.
Em Abril de 2008, com a liberalização da rota Funchal - Lisboa, no então chamado 'Céu Aberto da Madeira', o Governo da República teve de encontrar forma de proteger os madeirenses e cumprir com o estipulado na legislação portuguesa quanto à continuidade territorial e ao chamado serviço público de transporte aéreo, em vigor desde 1999 e garantido pela companhia de bandeira TAP Air Portugal.
Na altura, o Estado resolveu "adoptar mecanismos compatíveis com um regime concorrencial, que passam pela liberalização dos preços das tarifas aéreas, sem prejuízo da manutenção, numa fase transitória, dos auxílios à mobilidade dos passageiros residentes e estudantes, consubstanciados na atribuição de um subsídio fixo aos mesmos, tendo em vista suavizar o impacte inicial desta liberalização", conforme podemos ler no primeiro diploma que regulava a atribuição de um subsídio social de mobilidade aos cidadãos residentes e estudantes, no âmbito dos serviços aéreos entre o continente e a Região Autónoma da Madeira.
A atribuição dos ditos "auxílios sociais à mobilidade" obedecia um conjunto de critérios, resultando num "subsídio de valor fixo, por viagem entre o continente e a Região Autónoma da Madeira, desde que as tarifas utilizadas pelos residentes e estudantes sejam superiores a esse valor".
A par disso, a altreção implicava a "liberalização das tarifas aéreas de passageiros, pondo termo aos valores máximos a pagar pelos residentes e estudantes actualmente fixados" e a "revisão anual do valor do subsídio em função do comportamento das tarifas; atribuição do subsídio a posteriori, directamente aos beneficiários, devendo estes requerê-lo à entidade pública seleccionada pelo Governo para proceder ao pagamento, mediante prova da elegibilidade, passando as transportadoras aéreas a receber o valor da tarifa por inteiro, sem dedução do montante desse subsídio".
O modelo de subsídio foi sendo revisto e ajustado ao longo do tempo, sendo a alteração mais significativa a que ocorreu em 2019. O modelo que vigorou até então, e que na prática ainda hoje se mantém por falta da regulamentação da nova lei, determina que o passageiro pague por inteiro o valor da passagem, sendo depois reembolsado da diferença que vá além dos 86 e 65 euros (consoante seja residente ou estudante), mediante o tecto de 400 euros. O reembolso só pode ser solicitado junto dos balcões dos CTT depois de efectuada a viagem.
O que diz a nova lei? Em resumo, as novas regras aprovadas em Setembro de 2019, por maioria, pela Assembleia da República, depois de essa proposta ter sido validada previamente, por unanimidade, pelo parlamento madeirense, não alteraram os montantes a pagar pelas viagens (86 euros para residentes e em 65 euros para estudantes), mas ficou determinado que, e aqui reside a grande alteração, assumia o Estado o pagamento das indemnizações compensatórias às companhias áreas.
Tem sido, precisamente, o facto de serem as companhias aéreas a 'assumirem' os custos deste modelo, já que ficam à mercê da disponibilidade financeira para serem ressarcidas, pelo Estado, dos custos do mesmo, que tem levado a algumas críticas e até a alguma contestação. Vejamos até onde chegam esse descontentamento, de modo a percebermos se alguma companhia aérea, nomeadamente a easyJet ou a Ryanair, referidas por Paulo Cafôfo, já ameaçaram abandonar as ligações entre a Madeira e o continente, por via dessa imposição.
Ainda antes da aprovação da lei, quando decorriam os trabalhos preparatórios para a sua revisão, em 2017, a easyJet ameaçava abandonar as linhas Funchal-Lisboa e Funchal-Porto, se o modelo que veio a ser aprovado em 2019 fosse por diante. Em declarações ao jornal Público, o director em Portugal daquela companhia 'low coast', José Lopes, ressalvava que esse papel não podia ser delegado nas companhias aéreas.
"Esta é uma função do Estado português e, em nenhum caso, deverão as companhias de aviação substituir o Estado português nesta relação com o contribuinte residente na região autónoma da Madeira", dizia, ao mesmo tempo que rejeitava "completamente" qualquer tipo de "modelo que busque esta inversão de papéis".
Essa intenção vinha confirmar as suspeitas que já haviam sido apontadas, um ano antes, em 2016, por Luís Miguel Ribeiro, então presidente da ANAC - Autoridade Nacional da Aviação Civil, numa audição sobre o tema, na Assembleia Legislativa da Madeira.
Em Fevereiro de 2020, a companhia inglesa de baixo custo voltava a ameçar 'abandonar' as ligações da Madeira com o continente, caso a alteração do modelo de subsídio fosse por diante. Num comunicado emitido no dia seguinte à aprovação da nova alteração, a companhia emitia um comunicado onde dava conta dessa sua posição.
"No seguimento da aprovação ao dia de ontem [5 de Fevereiro de 2020] do novo modelo de subsídio de mobilidade da Madeira, apresentado pelos deputados do PSD Madeira, a easyJet reitera, uma vez mais, que não conseguirá implementar as mudanças inerentes ao mesmo", podíamos ler, adiantando que "a implementação destas medidas implica a expulsão da easyJet de um mercado liberalizado, por uma decisão política, e que forçará a companhia a interromper as duas rotas domésticas actualmente existentes entre a Madeira e o continente português, o que terá um enorme impacto negativo tanto na vida das pessoas, como no turismo e na economia de toda a Região", justificavam.
Mas houve outros momentos em que o possível abandono foi apontado, não pelas companhias, mas por entidades envolvidas na operação. Em 2020, com as alterações revalidadas na Assembleia da República, uma vez mais sem efeitos práticos, a Comissão de Trabalhadores da Comissão de Trabalhadores da Portway, através de um comunicado do qual o DIÁRIO fez eco, apontava as ameaças das companhias easyJet e Transavia em abandonar as rotas domésticas da Madeira, por força do modelo de subsídio de mobilidade que colocava o ónus do lado das companhias de aviação.
É inequívoco que esta medida [alteração de 2020] vem beneficiar todos os madeirenses, reforça o princípio de continuidade territorial e diminui o impacto da insularidade. Contudo, esta aprovação da alteração do pagamento deste subsídio, trouxe muitas preocupações aos trabalhadores da Portway, em especial aos trabalhadores da escala do Funchal pelo facto da EasyJet e Transavia ameaçarem abandonar as rotas domésticas. Comissão de Trabalhadores da Portway, em Setembro de 2020
Em 2022, em entrevista ao DIÁRIO, Eddie Wilson, CEO da Ryanair, embora não assumisse directamente que a companhia de baixo custo irlandesa abandonaria as rotas domésticas da Madeira com o continente, mostrou desagrado com uma possível alteração do modelo de subsídio que passasse a 'bola' do residente para a transportadora. Não são esquecidos os problemas nos primeiros anos da operação na Madeira no que toca à emissão das facturas adequados ao processo de reembolso, que levou alguns passageiros a desesperar pela 'devolução' do dinheiro que tinham 'adiantado'.
"O actual sistema é o melhor, porque quem é elegível para o subsídio são as pessoas residentes e não as companhias aéreas. As companhias aéreas não estão preparadas para identificar quem é cidadão residente na Madeira. O actual sistema é o melhor, até para os contribuintes portugueses, porque é menos passível de fraude", disse Eddie Wilson, deixando perceber algum desconforto.
Mesmo quando confrontado com as ameaças já feitas pela easyJet nesse sentido, o CEO da Ryanair não se comprometeu, ainda que se mostrasse confiante num modelo do seu agrado: "Nós falámos com o Governo Regional e acreditamos que o sistema não vai mudar, porque é melhor gerido pelo governo do que pelas companhias aéreas".
No ano passado, a Ryanair ameaçou fechar a base na Madeira, devido aos aumentos nas taxas aeroportuárias aplicadas pela ANA - Aeroportos de Portugal no Aeroporto Internacional da Madeira - Cristiano Ronaldo, não propriamente pelo modelo de subsídio social de mobilidade em vigor.
Perante as evidências apontadas, podemos concluir que é verdadeira a afirmação de Paulo Cafôfo, quando disse que "tivemos já companhias, como a easyJet e a Ryanair que ameaçaram sair da rota da Madeira", embora esta última não tenha assumido publicamente e directamente essa possibilidade.