O bom, o mau e os deslumbrados
Cafôfo passou a multi-candidato eleitoral e putativo concorrente a todos os atos eleitorais em que participa o PS
O bom: José Manuel Bolieiro
Os dados lançaram-se muito antes da noite eleitoral. De um lado, o PS de Vasco Cordeiro que construiu a sua campanha eleitoral em torno da ameaça do Chega vir a integrar o governo. Do outro, a Aliança Democrática de Bolieiro e a disponibilidade para governar sem maioria absoluta.
A correr por fora, o partido de André Ventura. O Chega ou faria parte do Governo Regional, ou não haveria Governo Regional. Contados os votos, e confirmada a vitória de Bolieiro, todos mantiveram a sua posição. Todos, menos o PS. Vasco Cordeiro, com a bênção de Pedro Nuno Santos, não permitirá o governo minoritário da AD. Não tardaram as comparações com a “geringonça” nacional ou a sugestão de que se trataria de um ajuste de contas pelo acordo parlamentar que levou o PSD ao governo dos Açores, em 2020, apesar da vitória eleitoral do PS. É certo que a aritmética parlamentar permite muita coisa, mas está longe de transformar água em vinho. O primeiro governo de Costa, embora lhe faltasse a legitimidade de uma vitória eleitoral, beneficiava de uma maioria parlamentar absoluta. Apenas essa circunstância, como assumido pelo PS na noite eleitoral, levou à queda do executivo de Passos Coelho. O mesmo arranjo parlamentar, aliás, que permitiu a Bolieiro formar governo apesar de Cordeiro ter ganho as eleições. Ao contrário de Costa em 2015, e de Bolieiro em 2020, Vasco Cordeiro e o PS açoriano não têm hipótese de construir uma maioria parlamentar alternativa à AD. Por outro lado, não pode o PS acenar com o perigo de um governo apoiado pelo Chega e, quando está nas suas mãos impedi-lo, assobiar para o lado. Nos Açores, o Chega passou a ser um problema do PS. Será que a história se repete a 10 de Março?
O mau: Ministério Público
No sistema judicial, especialmente no processo penal, não há vitórias, nem derrotas. Não perde o Ministério Público quando os acusados são absolvidos. Não ganha o juiz de instrução quando um crime é arquivado. Não vence o arguido quando as medidas de coação são as menos gravosas. Uma absolvição não é sinal de que o Ministério Público fez mal o seu trabalho e não se impede uma cabala judicial sempre que um juiz discorda de um procurador. Quando muito é a prova que o sistema funciona. Coisa distinta é quando uma mega-operação policial, com recortes de invasão territorial, redunda na lacónica constatação judicial que, afinal, não há indício de crime. Não estamos perante uma mera diferença de opinião, mas de duas visões profundamente antagónicas sobre os mesmos factos. Não é possível indiciar um alargado pacto corruptivo, congeminado anos a fio entre instituições públicas e privadas, e vê-lo reduzido, em 21 dias, a absolutamente nada. O Ministério Público é autónomo mas não pode ser impune. Qual é, afinal, a consequência para um procurador que lança uma operação de investigação, cujo único efeito prático é o derrube de um governo eleito democraticamente? Como se sentirá quem teve a casa invadida, às sete da manhã, para aparentemente nada? O que diremos a quem foi sumariamente enxovalhado em praça pública, durante 21 dias, por supostamente nada? De acordo com a procuradora-geral da República, zero. O Estado português, por irresponsabilidade do Ministério Público, deve à Madeira um governo regional, um presidente de câmara municipal e a liderança de um partido. E deve 21 dias a três cidadãos.
Os deslumbrados: PS Madeira
Durante duas semanas, a euforia tomou conta do PS regional. O cheiro a sangue, vindo da decapitação judicial do seu maior adversário, lançou os socialistas num frenesim eleitoral que só teria fim com a chegada de Cafôfo à Quinta Vigia. Desse por onde desse. Todavia, o erro histórico do PS Madeira não foi a insistência na realização de eleições. Essa teimosia era previsível. O erro dos socialistas foi apontar o processo judicial e a ficção de uma condenação antecipada, como as grandes razões para que os madeirenses voltassem às urnas. O PS quis fazer política com argumentos da justiça. Há, é justo dizê-lo, honrosas exceções à deriva judicialista. Miguel Silva Gouveia talvez seja o melhor exemplo de quem percebeu o risco de fazer política como quem faz justiça. Caminho diferente seguiu a cúpula do PS Madeira. A excitação socialista, apimentada pela miragem de um bom resultado eleitoral, permitiu vários episódios dignos de uma comédia política. Cafôfo passou a multi-candidato eleitoral e putativo concorrente a todos os atos eleitorais em que participa o PS. Foi ensaiada uma grande coligação partidária contra o PSD, na qual apenas o Bloco de Esquerda, por manifesto masoquismo, aceitou entrar. Até a data de apresentação do manifesto eleitoral coincidiu, para maior efeito mediático, com a decisão sobre as medidas de coação. Ainda assim, o maior momento de deslumbramento com a desgraça dos outros veio do fiel espadachim de Cafôfo. Miguel Iglesias, tornado hiena de ocasião, lançou-se numa ignóbil e repugnante tirada, publicada neste Diário, que confundia detidos com presos e decretava uma condenação sumária de quem ainda nem tinha sido julgado. Um vale tudo que fez muitos socialistas corar de vergonha. Até que, no mesmo dia do ataque soez, talvez por justiça cósmica, uma decisão judicial dinamitou o despacho de indiciação e fez ruir o projeto bicéfalo de poder do PS. E agora?