Será que o PAN apoia um Governo que ‘massacra’ cabras nas Desertas?
Ontem, num debate na RTP entre cabeças-de-lista às eleições nacionais de 10 de Março, Rui Tavares (Livre) acusou o partido de Inês Sousa Real (PAN) de incoerência, por defender os animais mas apoiar um Governo do PSD-Madeira que promoveu “massacres da cabra das Desertas a tiro e com veneno de ratos”. Será mesmo assim?
As cabras não são uma espécie natural das ilhas Desertas. Foram ali introduzidas, tal como os coelhos, há mais de 400 anos. No estudo ‘As Ilhas Desertas’, publicado em 2005 pela Secretaria Regional do Ambiente e Recursos Naturais e pelo Serviço do Parque Natural da Madeira, admite-se que a introdução da cabra (Capra hircus) e do coelho (Oryctolagus cuniculus) ocorreu “provavelmente no século XV” e resultou da “tentativa de colonização destas Ilhas pelo Homem, com o objectivo de fornecer alimento”. Não se trata de uma espécie rara, ao contrário da ave Freira-do-Bugio, que nidifica e vive nas Desertas.
Na Madeira não há touradas mas houve massacres da cabra das Desertas a tiro e com veneno de ratos e esse depois é um Governo que se vai apoiar, embora não se tenha dito durante a campanha eleitoral que se ia apoiar esse Governo do PSD. Rui Tavares (Livre), no debate televisivo de quarta-feira com Inês Sousa Real (PAN)
Aquilo que o PAN garantiu foi que faz avançar as suas causas através da representação que tem na Região Autónoma da Madeira. Se olhar para o despacho que já saiu das actividades cinegéticas, todas essas actividades que o Rui referiu já não constam do mesmo. Isto deve-se à acção do PAN. Os projectos que estavam em causa – do teleférico do Curral das Freiras ou até da estrada das Ginjas – foram suspensos pela acção do PAN. E Miguel Albuquerque foi afastado pela acção responsável do PAN. Resposta de Inês Sousa Real (PAN) no mesmo debate na RTP
A partir de 1995, no âmbito do projecto Life de conservação da Freira-do-Bugio e recuperação do seu habitat, financiado pela Comissão Europeia, uma das medidas aprovadas foi a erradicação dos coelhos e das cabras, que “causaram uma depreciação sem precedentes no coberto vegetal daquela ilha, tendo desencadeado, simultaneamente, um processo erosivo devastador”. Vigilantes da natureza, técnicos do Parque Natural da Madeira e de uma empresa neozelandesa ‘Wildlife Management International’ foram mobilizados para essa missão. O então presidente do Parque Natural, Henrique Costa Neves, explicava os métodos para remover as cabras: “Quando possível, serão capturadas vivas. Mas dadas as características dos animais e a orografia do terreno, a grande maioria será inevitavelmente abatida a tiro”. Em paralelo, foi utilizado veneno para eliminar morganhos e ratos naquelas ilhas, sendo que, indirectamente, o raticida contribuiu para reduzir a população de cabras.
Ao longo dos anos, houve notícias da utilização destes dois métodos (caça a tiro e veneno) para erradicar as cabras das Desertas. Por exemplo, a 25 de Março de 2019, o DIÁRIO revelava que a Polícia Florestal estava a utilizar espingardas para matar cerca 200 cabras da Deserta Grande, sempre ao abrigo do programa Life, cofinanciado pela União Europeia, para preservação da flora endémica.
Nas últimas três décadas, poucas foram as vozes de políticos ou ambientalistas que contestaram o projecto de erradicação das cabras das Desertas. No plano político, foram mais aqueles que apoiaram a medida do que aqueles que se opuseram à mesma. E quem contestou, dirigiu as críticas ao método utilizado na eliminação da espécie e não à medida em si. Uma dessas excepções foi o primeiro deputado eleito pelo PAN. Por várias ocasiões, no parlamento da Madeira, Rui Almeida contestou os métodos utilizados na operação. Na sessão plenária de 30 de Julho de 2013, este parlamentar dizia: “Deparamo-nos com situações que já foram aqui referidas por outros deputados, como cabras mortas a tiro, em propriedade privada, cabras que estariam prenhas, que criam crias, aqui e também nas Desertas, este é o método aplicado, não só relativamente às cabras, mas temos os pombos torcazes, em que também o método é pouco imaginativo, é bárbaro e passa basicamente por abatê-los a tiro. Portanto, a nós, choca-nos que esta seja a solução encontrada e aplicada no terreno”. Na sessão plenária de 1 de Abril de 2014, Rui Almeida (PAN) voltou a falar da vertente ética desta questão e comparou o abate a tiro com “um evento desportivo de irem lá caçar as cabras para fazer, desta forma, o controlo da sua população”. Na resposta, o deputado Vicente Pestana (PSD) reconheceu que “o ideal seria que esses animais fossem recolhidos e abatidos de acordo com as normas internacionais e com os direitos dos animais” mas lembrou que “a orografia daquelas ilhas não permite que assim se proceda e, portanto, procedeu-se da forma que é possível, da forma que é viável, tentando, a todo o custo, respeitar os direitos dos animais”, tal como garantir a segurança dos técnicos e das pessoas que têm de executar essas acções.
Em Dezembro de 2020, a deputada Sílvia Silva (PS) denunciou no parlamento a “matança das cabras da Deserta Grande”. Mas mesmo neste partido, a opinião não é unânime. Aliás, um dos primeiros alertas para os problemas decorrentes das cabras nas serras foi deixado pelo deputado socialista Duarte Caldeira na já longínqua sessão parlamentar de 22 de Junho de 1982, quando era discutido o diploma da criação do Parque Natural da Madeira: “Lembramos, por exemplo, a ilha de 5anta Helena em que meia dúzia de cabras deram cabo da florestação e iam conduzir à desertificação de uma ilha. Aqui, na Madeira, muitas zonas já vão a caminho dessa mesma desertificação”.
Quem contestou de forma mais radical a medida de erradicação das cabras das Desertas foi a organização de defesa da causa animal ‘Direct Action Everywhere – Madeira’. Em Setembro de 2019, três elementos deste grupo deslocaram-se às Desertas e denunciaram o “assassinato” e “extermínio” das cabras. Promoveu-se na mesma altura uma manifestação no Funchal, junto ao parlamento regional. Em Dezembro de 2020, promoveu outra acção de sensibilização no Funchal contra "o abate Indiscriminado das cabras das Desertas” e "a aplicação do pesticida-herbicida glifosato, altamente cancerígeno, no Parque Natural das Ilhas Desertas".
Em resumo, Rui Tavares (Livre) diz a verdade quando refere que o Governo Regional liderado pelo PSD, que agora conta com o apoio parlamentar da deputada Mónica Freitas (PAN), tem promovido campanhas de erradicação das cabras das Desertas, mas esquece-se que se trata de uma medida apoiada pela Comissão Europeia e que visa recuperar a flora endémica e salvar a Freira do Bugio, espécie que também vive naquelas ilhas e que se encontra ameaçada.