Será que a ‘Noite Travesti’ está a perder força no Carnaval madeirense?
Numa análise da semana publicada na edição de domingo do DIÁRIO, a professora universitária Vanessa Cesário constatava que “o Carnaval da Madeira viu a icónica Noite dos Travestis desvanecer-se”. Por tradição, era na sexta-feira de Carnaval que as discotecas e bares da Madeira organizavam uma festa que “se celebrava a inversão de papéis de género, em clima de liberdade”, só que nos tempos mais recentes “a festa esmoreceu, ou pelo menos, o seu nome e espírito original já não são reconhecidos como antes”. Será que é mesmo assim?
O Carnaval é a época da transfiguração e nas celebrações na Madeira sempre foi habitual haver homens que se mascaram de mulheres e vice-versa. No entanto, a organização de eventos carnavalescos em estabelecimentos de diversão dedicados à temática travesti tem cerca de 40 anos. A primeira referência que encontrámos remonta a 1983 e diz respeito a uma ‘Grande Noite de Carnaval’, com ‘show travesti’, realizada na discoteca ‘Disco Sound’, no Hotel Buganvília. No ano seguinte, a discoteca ‘O Farol’, no antigo Hotel Sheraton (actual Pestana Carlton), promoveu uma festa semelhante, tendo por atracção Lydia Barloff, anunciado como “o melhor travesti burlesco”.
Mas a primeira vez que se promoveu na Madeira uma “Noite Travesti”, com as características que se tornaram habituais, foi no Carnaval de 1985, também na discoteca ‘O Farol’. Todos os foliões eram incentivados em participar activamente na celebração. A entrada teve lugar num sábado e a entrada era gratuita para quem fosse de travesti e os melhores disfarces ganhavam prémios. Na promoção foi utilizada uma frase que veio a ser parcialmente repetida nos anos seguintes: “Quando ele é ela e ela é ele, a confusão que dá! Não perca tempo, venha até cá”.
Nos anos seguintes, esta fórmula foi sendo mais ou menos copiada por outras discotecas madeirenses (Kalifa, Barbarela, etc.). As duas maiores discotecas da Madeira (Vespas e Baccara/Copacabana) aderiram ao conceito pouco depois. Em 1987, a discoteca Vespas, ainda instalada na zona do Ribeiro Seco, fixou a ‘Noite Travesti’ na sexta-feira de Carnaval, primeiro dia de festividades da quadra carnavalesca, no que se veio a tornar uma tradição ao ser assumida pelos restantes estabelecimentos de diversão nocturna. Em 1992, a então discoteca Baccara (mais tarde rebaptizada de Copacabana) elegia o “travesti do Carnaval”.
Esta fórmula tem vindo a ser seguida, até hoje, por muitos bares e discotecas da Madeira. Ainda na passada sexta-feira, foram vários os estabelecimentos do Funchal que realizaram festa de travestis, de que são exemplos, o Mini Eco Bar, Venda Velha, discoteca Trap ou snack-bar Lagar da Barreira. A própria Secretaria Regional do Turismo, na apresentação promocional da quadra carnavalesca de 2024, anuncia “são vários os locais de diversão nocturna que oferecem festas temáticas, como a ‘Noite dos Hippies’ e a ‘Noite dos Travestis’, convidando todos a se divertirem disfarçados com uma máscara desse tema”.
No entanto, as duas maiores discotecas da Madeira deixaram de organizar a ‘Noite Travesti’. A última vez que tal aconteceu no Copacabana foi 2016. O respectivo director artístico, Márcio Costa, assumiu que a discoteca do Casino quis “distanciar-se desse tema” e apostar numa temática própria. Assim, nas sextas-feiras dos carnavais de 2017 a 2022 celebrou “os loucos anos 20 do século XX” do ‘Great Gatsby’, no ano passado optou por uma batalha de almofadas na pista de dança e este ano houve uma ‘Ladies Fever’.
Já as Vespas substituíram em 2024 a ‘Noite Travesti’ pelo ritmo ‘Funk Brazil’, quebrando uma tradição com quase quatro décadas.
Em resumo, confirma-se a conclusão de Vanessa Cesário de que “o Carnaval da Madeira viu a icónica Noite dos Travestis desvanecer-se”. Na já citada análise, a professora universitária deixou uma possível justificação para esta tendência: “As alterações nas atitudes perante as questões de género e o envolvimento da juventude nas redes sociais sem conhecimento destas tradições, podem ter contribuído para esta evolução. As gerações mais velhas guardam memórias deste tempo de folia, enquanto as novas gerações parecem virar-se para outras formas de entretenimento”.