Não é Não!
Consentimento é a permissão consciente para algo acontecer ou a concordância para fazer algo. Pede respeito e comunicação. Inclui conhecer e respeitar os próprios limites, integridade, bem como os limites e integridade dos outros
Há temas que, pela sua natureza (cada vez menos) de quase tabu, podem atirar-nos para as catacumbas do silêncio e por lá permanecer, por anos. Amanhã celebra-se o Dia de São Valentim, mais conhecido pelo “Dia dos Namorados”. Peço por isso, a atenção, reflexão e ação conjunta, para um tema estruturante nas relações: o consentimento, até porque já escrevi uma crónica Essencial sobre limites. No meu livro “Gurus de Palmo e Meio”, dedico-lhe praticamente um capítulo. Hoje, com a devida distância temporal e emocional dos acontecimentos, sinto que podia escrever um livro inteiro sobre o tema. O que acontece na infância, não fica na infância, vai connosco para a vida e pode ser a porta de entrada para todo o tipo de violência doméstica.
O tio Manuel quer dar um beijinho à Maria. Mas a Maria não quer. Protesta, tenta fugir dos braços do tio. “Dá-me um beijinho, Maria!”, insiste o tio. “Vá, Maria! Dá um beijinho ao tio, olha que ele fica triste e já não gosta mais de ti!”, reclama a mãe.
“Pára! Pára, por favor, não aguento mais, papá”, diz a Sofia, encolhida sobre a barriga, enquanto o pai continua a fazer-lhe cócegas, incessantemente.
A Lia vai brincar no parque. Leva o casaco no braço. A educadora vê que a Lia não vestiu o casaco e ordena-lhe que o vista. A Lia explica que não tem frio. A educadora, volta a dar a mesma ordem. Perante o olhar incompreendido da Lia, irritada, a educadora tira-lhe o casaco do braço e veste-lho à força.
O João não quer comer mais sopa. A mãe insiste. Com um ar enjoado, o João explica que já não consegue comer mais. Está cheio. A mãe diz “não me interessam os teus quereres, comes e comes mesmo que o prato ainda tem sopa!” E abre a boca do João enfiando-lhe uma colher de sopa à força.
Exemplos destes e outros, (ainda) pautam o dia-a-dia em muitas casas e escolas. E não, as crianças obviamente, não podem fazer tudo o que desejam. Precisam sim, de adultos atentos às suas necessidades, o que é bem diferente (escreverei sobre as diferenças noutra crónica). Agora, quero frisar que ainda vemos muitos adultos que, embora bem-intencionados, desrespeitam os limites pessoais e a integridade das nossas crianças. Nascemos todos com a capacidade de demonstrar os nossos limites, depois, precisamos de aprender, relacionando-nos e interagindo, a respeitar os limites dos demais. E o que acontece, na maior parte das vezes, não é nada isso.
A mensagem que está constantemente a ser emitida é a de que um “não”, de alguém numa posição mais ‘fraca’, ‘inferior’, vale o que vale, e não necessariamente é um “não”. Aliás, o tipo de comportamentos que mencionei, reforça que, quem tem mais poder - seja pela condição da idade, tamanho, força física, ou papel - tem o direito de impor a sua vontade. Ora, a capacidade de dizer “sim” e “não”, ou seja, o consentimento, e sobretudo, o respeito pelo “não” é ensinado nas pequenas interações do dia-a-dia entre adultos e crianças.
É um processo com frente e verso. Por um lado, temos a responsabilidade de ensinar às nossas crianças, pelo exemplo, a respeitarem os “nãos” dos outros. Por outro lado, é também, da nossa responsabilidade, guiá-las na arte de exprimirem os seus “nãos” de forma saudável e convincente. Em tudo isto havemos de saber relacionar-nos com estes “nãos”. É assim que se ensina sobre respeito próprio e pelo outro. Quando sentimos que os nossos limites estão a ser respeitados, aprendemos, naturalmente, a respeitar os limites do próximo. Em vez de obediência, procuremos cooperação, através do respeito mútuo. E porque é que este ensinamento é essencial? Porque contribui para a criação de relações saudáveis em todos os contextos e sobretudo, na adolescência e na vida adulta, com futuros pares românticos. Praticar conscientemente o consentimento reduz, exponencialmente, incidentes relacionados com coação sexual, abuso sexual, perseguição...
“Onde não puderes amar, não te demores.”
É importante esclarecer, de uma vez por todas, que o sexo não é uma obrigação no contexto de uma relação de intimidade. Cada ato sexual implica o consentimento por parte dos envolvidos na relação, seja ela de compromisso ou ocasional.
Grande parte das situações de violência sexual acontecem no contexto das relações mais íntimas, ou seja, no casamento, união de facto, numa relação de namoro. Por isso, partilho alguns sinais que, se estiverem presentes no relacionamento, são um alerta da existência de violência sexual ou agravamento da mesma:
• Beijos, apalpadelas ou outros toques não consentidos, forçar a iniciar a atividade sexual, forçar a ter práticas sexuais indesejadas, induzir ou forçar a ver vídeos ou imagens de teor sexual, entre outras.
• Uso de argumentos para convencer a praticar um determinado ato sexual, como: “eu amo-te e tu não me amas”, “se calhar és frígida”. Ou, “mas há dias disseste que sim.”
• Forçar ou pressionar a praticar atos sexuais que não se sente confortável, que não gosta ou não quer.
• Ser envergonhada/o, rebaixada/o, humilhada/o por negar o envolvimento numa prática sexual, recebendo insultos ou outro tipo de agressões verbais e psicológicas, como “não prestas”, “se me amasses de verdade, fazias”.
• Receber ameaças de que o outro vai ser infiel ou ser acusada/o de o ser, quando não aceita realizar algum ato sexual.
• Ser ameaçada/o de ver a relação terminar quando disser “não” a um determinado ato sexual.
• Aproveitarem-se de algum ato sexual realizado em mútuo acordo no passado para ser pressionada/o a repeti-lo.
• Insistirem consigo numa prática sexual a que se sujeitou no passado, usando argumentos do género “mas depois, até gostaste lembras-te?!”.
• Fazerem-na/o sentir que o seu papel na relação é o de satisfazer os desejos e fantasias sexuais da/o parceiro/a.
Pelo fim das atitudes abusivas! Tem direito a ser feliz, inteira/o, numa nova relação, agora saudável. Proteger-se a si, é proteger os seus!