O prazo de detenção, na investigação judicial da Madeira, já bateu todos os recordes em Portugal?
Está prevista para a próxima quarta-feira, dia 14 de Fevereiro, a fixação das medidas de coacção a Pedro Calado, Avelino Farinha e a Custódio Correia, detidos no âmbito da investigação judicial à alegada prática de actos de corrupção na Madeira. Naquele dia, completam-se três semanas, desde que os três foram detidos e constituídos arguidos.
Essas três semanas excedem, em muito, as 48 horas, referidas na lei (Constituição da República Portuguesa – CRP, art. 28, n.º 1) e têm espoletado um conjunto de reflexões e críticas, de actores judiciais e de comentadores, junto da comunicação social, por, ao que afirmam, colocar em causa os direitos fundamentais dos arguidos.
Tem sido dito que as três semanas constituem um recorde de tempo, em Portugal, em que um arguido aguarda a fixação de medidas de coacção, contadas a partir do momento da sua detenção. Será isso verdade?
O esclarecimento da dúvida não é fácil e a conclusão implica sempre algum risco, por não nos ser possível ter uma certeza a 100%, mas tentaremos aproximarmo-nos desse grau de confiança.
Nesta abordagem, não nos vamos deter na discussão sobre o momento em que começa a contar o prazo, por pouco relevante neste caso. Mas a doutrina, que tende a prevalecer, defende que a contagem deve de ser iniciada no momento em que o arguido foi privado da sua liberdade de acção, mesmo que antes da formalização da detenção.
Centremo-nos, pois, na questão do prolongamento do período de detenção para efeitos primeiro interrogatório judicial e fixação das medidas de coacção.
Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que as 48 horas definidas na lei são para fazer o detido comparecer diante de um juiz, podendo o interrogatório decorrer depois disso, dentro do tempo estritamente necessário, que deve de ser o mais curto possível.
Apesar desse entendimento, há quem discorde e defenda que, sempre que são ultrapassadas as 48 horas, há violação dos direitos fundamentais do arguido, consagrados na própria Constituição. No entanto, como referido, prevalece a entendimento contrário.
“Situações há em que se torna inviável a apreciação judicial da detenção em tempo útil, o imposto pelo art. 28 da CRP – 48 horas -, ou seja, o caso dos megaprocessos.”
“Houve casos de megaprocessos, quanto a número de arguidos, (e aparecem com alguma frequência) em que o último foi interrogado apenas alguns dias após a detenção. E, é normal a aplicação da medida de coacção a cada um dos arguidos envolvidos, só após a audição (interrogatório) de todos”, defende Fernando Jorge Dias, em as Medidas de Coacção no Processo Penal Português, Universidade de Coimbra, Janeiro de 2019.
A mesma lógica é aplicada aos processos com menos arguidos, mas com grande complexidade.
É por essa razão que se admite a visão, já referida, do Tribunal Constitucional, no acórdão nº 135/2005, de 15/03/2005, na senda do acórdão nº 565/2003, de 19/11/2003, que dizem que o n.º 1 do artº 28º da CRP estabelece um prazo para apresentação do detido ao juiz, mas já não para a decisão judicial de validação da decisão.
Como referido no já citado estudo, este entendimento, na visão do Professor Maria João Antunes “‘dá o flanco à observação de que, assim sendo, não há limite temporal para uma privação da liberdade em relação à qual não há ainda a garantia de que respeita o regime constitucional de restrição do direito à liberdade, nomeadamente a exigência de necessidade (art. 18 da CRP)’. Questionando de seguida se existe lei que permita o alargamento do prazo da detenção (dando a entender que a resposta será negativa), que pode ser desmesurado, mesmo sendo o mais curto espaço de tempo possível”.
Os especialistas propõe algumas medidas para reduzir os prazos, nomeadamente haver mais do que um juiz de instrução, para o mesmo processo, e até poder haver fixação de medidas de coacção por diferentes juízes, para diferentes arguidos e não excluem perentoriamente que possa ser em momentos diferentes.
Outra medida em consideração seria “impor ao Ministério Público a obrigação de apresentar ao juiz de instrução os autos (ou cópia deles) e o requerimento para aplicação da medida de coacção com uma antecedência, razoável e adequada à complexidade e dimensão do processo, sobre a detenção ou o momento imposto ao arguido para comparecimento” (em Medidas de Coacção, Centro de Estudos Judiciários, Novembro de 2020).
Aparenta existir uma certa unanimidade que de se impõe uma alteração ao edifício jurídico aplicável.
Quanto aos prazos históricos, para o apurarmos, fizemos intensa pesquisa manual e recorrendo a ferramentas informáticas, incluindo de inteligência artificial. Tudo leva a crer que estamos perante um prazo recorde.
Vejamos, muito sinteticamente, os factos apurados,
O já citado estudo, identifica o caso da Academia de Alcochete (Sporting), em que dois arguidos detidos num domingo à noite, “apenas viram ser-lhe aplicadas as medidas de coacção na quinta-feira seguinte”.
Já a propósito da investigação judicial à alegada corrupção na Madeira, o juiz presidente da comarca de Lisboa, Artur Cordeiro, em entrevista à agência Lusa, defendeu que os arguidos não podem ficar privados de liberdade durante semanas, para efeito de primeiro interrogatório judicial e exemplificou com dois casos recentes: Operação Influencer (Governo da República) – 6 dias entre a detenção e as medidas de coacção; Operação Picoas (Altice) – 11 dias.
Os acórdãos do Tribunal Constitucional, que percorremos, sobre este tipo de casos, apresentam períodos bem mais curtos, normalmente, alguns dias, nunca três semanas.
Eu espero que o Ministério Público, com a maior rapidez possível, promova as medidas de coacção, para não esperarmos mais. É do nosso interesse. Vamos no décimo sexto, sétimo. Já perdi a conta. Eles não perderam.
(…)
Todos temos de fazer um esforço para, com critério e ponderação, fazer as coisas com maior rapidez possível. Não tem de ser feito aos atropelos, é evidente. Mas todos temos de ter a consciência do tempo que isto está a demorar. É caso único e nunca visto. Acho que temos de ter, todos, essa consciência.
Navarro Noronha – advogado de Custódio Correia
Os advogados defendem os direitos fundamentais e a liberdade das pessoas. E devem de defender intransigentemente estes valores.
Quando entendemos que estes valores estão a ser postos em causa, fazemos o que achamos que devemos de fazer.
Se tem ouvido a comunidade jurídica, há muitos colegas, reputados, prestigiados, de vários sectores, que se têm pronunciado criticamente quanto à duração desta detenção.
Se forem ver, esta detenção não tem paralelo em situações anteriores.
É um dever, que recai sobre os defensores destes arguidos, fazerem tudo o que está ao seu alcance para os restituir à liberdade.
Esta decisão vai ser uma decisão histórica. Vai ser histórica porque parece que batemos os recordes de detenção, numa situação desta natureza. Isso, com certeza que dará origem a um caso de estudo. Paulo Sá e Cunha – advogado de Pedro Calado
Assim, pelo exposto, podemos afirmar com um grau elevado de certeza, ainda que não absoluta, que as afirmações, como a de Paulo Sá e Cunha, que dizem estarmos perante um caso único, quanto à duração da fase de primeiro interrogatório judicial, até a definição de medidas de coacção, é verdadeira.