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Crónicas

Doutores e engenheiros

Nós continuamos com esse tique ridículo ou para ser mais suave, esta mania dos títulos, como se isso fosse razão alguma para se ser mais erudito ou superior

A semana passada, estava eu a almoçar com uns amigos de países africanos de língua portuguesa, quando um deles disse, que uma das coisas boas do país dele, era a facilidade com que se chegava ao topo da pirâmide ou seja que a relação entre o comum dos cidadãos e um ministro era muito mais informal do que em Portugal. Não precisei de muito para o entender. Bastou ligar a televisão e ver os primeiros debates das legislativas para ouvir doutor para aqui e doutor para ali. A verdade é que nós continuamos com esse tique ridículo ou para ser mais suave, esta mania dos títulos, como se isso fosse razão alguma para se ser mais erudito ou superior. Não consigo de facto entender, não me entra na cabeça, como é que a cabeça de certas pessoas está tão formatada que lhes sai de forma espontânea. Alguém com um cargo superior ou de relevo é automaticamente elevado a doutor ou engenheiro e o mais estranho no meio disto tudo é que as pessoas que são tratadas dessa forma muitas vezes nem sequer tiraram formação adequada para poderem usar esses nomes pomposos mas também pouco ou nada fazem para desmentir essas falácias.

Vivemos muito num faz de conta. Emaranhados em inglesismos ou em categorias que nem sequer são as nossas. Mas nós vamos deixando passar porque fica bem e a sociedade assim o determina. Quantas pessoas é que têm por exemplo “doutor” no cartão de débito ou de crédito bancário quando não são doutores de porra nenhuma e quantas delas é que fizeram alguma coisa para alterar o erro? Confesso que a mim me faz muita confusão continuarmos, no século XXI, a usar essas terminologias para nos segmentarmos, para realçarmos este ou aquele, para distinguirmos uns e outros quando nem sequer sabemos se tiraram o curso, se são autodidatas ou se passaram parte da vida a estudar. E na verdade muito pouco importa. As pessoas deviam ser tratadas pelos nomes, só pelos nomes e nada mais. Esse é o selo que cada um carrega e que nos identifica, é a forma correta de nos abordarmos uns aos outros. Não são os títulos muitas vezes aldrabados ou desadequados que nos fazem ser maiores ou mais importantes. Nós é que achamos que sim.

É como em certas empresas, os cargos que são determinados. As pessoas dão muita importância ao que vem escrito no cartão de visita e muitas vezes esquecem-se do essencial. Dá vontade de rir ao ver inúmeras start ups que acabaram de ser criadas e têm apenas os dois sócios a trabalhar no negócio mas um assume-se como CEO e o outro como CFO. E lá andam felizes e contentes porque têm um nome pomposo atrelado ao que lhes foi dado à nascença. Como é possível estarmos num debate que pretende esclarecer o eleitorado sobre este ou aquele candidato às próximas legislativas e insistem na tecla do doutor. Muitas vezes, pessoas que se tratam por “tu” nos corredores, que têm à vontade uns com os outros, chegam ao momento do faz de conta e lá estão eles a desempenhar o seu papel. É de uma hipocrisia e de uma desfaçatez que a mim me diz muito sobre esses indivíduos. E não vejo ninguém, nem uma única alminha a meter ponto de ordem à mesa e a dizer que dispensa tais adereços.

O Portugal dos doutores e engenheiros revela muito de si. Revela sobretudo a incoerência de quem se acha modernaço mas não consegue largar os tiques bafientos do passado. De quem quer ser o que não é e de quem se quer adaptar aos temas contemporâneos sem sequer entender o que está em causa. É por isso que decorar alguns sound bites não diz assim tanto de nós. Enquanto não conseguirmos perceber que não é o título que nos descreve mas sim as acções que praticamos no dia a dia, não percebemos absolutamente nada do que andamos aqui a fazer. Vivemos num país que não se consegue dissociar dos rótulos, dos apelidos e dos títulos. Como se isso revelasse o que cada um de nós pode acrescentar. Como se isso determinasse o nosso valor ou a nossa capacidade.