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Crónicas

As flores

E, nessa noite, quando dei o braço à minha mãe e fizemos o caminho até casa, a vida pareceu certa e direita

A jarra com as flores que me deram no jornal ficou no quarto de engomar quase até à Festa. A minha mãe não queria esquecer a melhor memória de 1994 e estava feliz por acabar o ano sem a sombra do cancro a pairar sobre a minha vida. A luta foi pessoal, intransmissível e tinha sido eu e a sala de quimioterapia, enquanto do outro lado da janela o Inverno dava lugar à Primavera até chegar o calor do Verão e as chuvas de Outono. Os amigos mandavam postais das férias para a casa do Laranjal e a minha mãe dizia-me para acreditar, ia chegar a minha vez de escrever de Paris, Roma ou de outro lugar qualquer.

Só não podia ser já, naquele instante, mas se tivesse paciência, se fosse forte e aguentasse o cabelo a cair e o estômago virado ao contrário, o mundo seria meu. E ela estava ali, sempre, para ir à livraria comprar livros ou trazer o pequeno almoço e jogar cassino aos domingos à noite na sala. Ou para me dar o braço quando vínhamos da casa das minhas tias com um sorriso na cara, onde escondia a dor e o sofrimento. Eu estava lá, no posto, no meio de um furacão, mas ia trabalhar todos os dias. A minha mãe ficava em casa, sozinha, a remoer o facto da filha de 23 anos ter um cancro.

E, por isso, quando cheguei a casa com o ramo de flores no dia em que soube que não havia sinal da doença, arranjou uma jarra e deixou-as lá a lembrar o melhor dia daquele ano. Os restos secos acabaram por desaparecer quando se tirou as gavetas dos armários e virou a mobília do avesso para limpar a casa para a Festa. O meu pai, que naqueles meses chorou às escondidas na loja, fez-me um presépio no canto da sala da televisão e o meu irmão cumpriu o costume de colocar o Menino Jesus em apuros e na boca de um crocodilo de borracha.

Houve uma escadinha, com trigo e pêros e o meu tio Humberto trouxe um ananás dos Açores, que ficou na fruteira do quarto de jantar. Acho que esse foi o último ano em que o aroma da fruta se confundiu com a cera no soalho e o cheiro dos junquilhos. Foi também o último ano em que estivemos todos à mesa para comer galinha guisada. O meu pai adormeceu a ver televisão, a minha mãe passou a tarde a lavar a loiça e já não sei bem o que fizemos, o meu irmão e eu. Se calhar fomos dar bombas. Ou melhor, o meu irmão foi dar bombas, eu terei feito claque.

A tarde acabou em casa das minhas tias, de volta da mesa, a comer azeitonas e broas, com a televisão ligada no telejornal e várias conversas, umas por cima das outras, mas todos aliviados por mim, por já não estar doente e não carregar aquela espécie de maldição, por não a trazer para o Natal e por haver esperança. Nessa Festa, até a minha tia Alice teve de rever a ideia sobre a nossa falta de sorte, que eu estava ali, igual ao que sempre fora, com o mesmo apetite e de nariz no ar.

E, nessa noite, quando dei o braço à minha mãe e fizemos o caminho até casa, a vida pareceu certa e direita. Eu não tinha postais para mandar de capitais europeias, nem tinha chegado ainda o momento de partilhar aqueles meses de quimioterapia, de cancro e de pensamentos sombrios, mas estava viva, tinha uma família, uma casa e uma cama confortável. E isso era muito, até para uma miúda de 23 anos.