O porco da festa e o capão
Invade-me a alma a saudade e, nas teias da minha memória, os enleados montes de recordações, teimam em soltar-se, soprados por um vento saudosista, que me trás na sua aragem lembranças de velhos tempos, que o decorrer de anos e mais anos, jamais conseguiu apagar.
Nessa minha infância, em que os dias pareciam mais longos e eram tão pequenas aquelas noites de um só sono, o natal ficava lá tão longe, que parecia nunca mais chegar à festa. Nem quando a Ti-Rosa passava lá em casa a meados do ano, para capar o galo, que havia de ser o capão da festa, pois ainda faltavam muitos meses para lá chegar. Mas, de qualquer maneira aquele ato sempre nos dava uma restea de esperança, embora ainda fosse muito cedo para começar em contagem decrescente, os dias que faltavam para tão almejado acontecimento; o dia de natal.
Quando o sacrificado animal resistia a tão dolorosa cirurgia, tornava-se um animal vistoso muito gordo, já que não tinha outra qualquer função, senão passar o dia a comer, embora andasse sempre rodeado de galinhas que, alheadas ao seu condicionamento orgânico, não o deixavam, agrupando-se na soltura daqueles campos verdes, já que estas aves eram criadas soltas e, onde várias vezes as galinhas apareciam com suas ninhadas de pintos, para surpresa da sua dona. Isto só acontecia porque, para além do capão, havia outro galo, claro.
- Olhe vizinha, veja o meu capão como está bonito, vai dar uma rica canja, regozijava-se a dona do galo.
- Benza-te Deus, está lindo, respondia a vizinha.
- O meu também anda p´ra aí, a espairecer com as galinhas, retorquia ela.
Era bom pressagio dizer benza-te Deus, caso acontecesse alguma coisa ao galo, não fosse alguém pensar, que foi a inveja ou o mau olhado, que afetou o bicho. Neste caso era o galo, mas este benza-te Deus, aplicava-se sempre que se observava algo de espampanante em pertença de outrem; por exemplo o porco da festa.
Assim se chamava ao porco que se matava na quadra de natal; o porco da festa.
Este animal era um suporte na economia familiar, visto ser a sua banha, o tempero da comida ao longo de todo o ano e, a sua carne a juntar-se à do capão da festa, eram as únicas carnes comidas durante o ano.
Toda a gente se presava, ter um capão para a festa. Já o porco da festa, os mais carenciados, muitas vezes não o tinham, contentavam-se apenas com alguns pedaços de carne que recebiam de oferta dos vizinhos. Era tradição oferecer-se uma posta de carne a quem não tinha porco e, assim o cheiro da carne da vinha d’alhos chegava a todos os lares. A solidariedade naquela época não era coisa vã. As necessidades de então, assim o fomentavam.
Não havia qualquer acompanhamento veterinário para estes animais. Muitas vezes eram acometidos de doenças e morriam, ficando os seus donos irremediavelmente sem o porco da festa, o que na época era um transtorno muito grande. Então dizia-se na aldeia, que foi o ar que passou no porco.
Cantava-se esta quadra na aldeia:
Carne de porco não tenho
Porque meu pai não matou
O nosso porco da festa
Deu-lhe o ar e azogou
José Miguel Alves