UE não pode contar mais com EUA mas não está pronta para se defender
A União Europeia não está preparada para garantir a sua própria segurança, mesmo sabendo que já não pode continuar a contar com a proteção norte-americana, face à reeleição de Donald Trump, concordaram hoje vários analistas europeus num debate 'online'.
Num debate dedicado ao tema "Integração da defesa europeia após as eleições nos EUA", coorganizado pelo Instituto de Direito Europeu de Dublin e pelo Instituto Brexit, os vários oradores participantes foram unânimes em considerar que, apesar das ameaças já deixadas por Trump, no seu primeiro mandato (2017-2021), relativamente a um desinvestimento na NATO, a Europa fez muito pouco para garantir a sua autonomia em termos de defesa.
Apontando problemas como a falta de capacidades militares, os analistas também concordaram que o maior problema que a União Europeia (UE) enfrenta está ao nível dos Tratados pelos quais se rege, que tornam praticamente impossível uma integração da defesa europeia, pelo que sugerem que se pense "fora da caixa" e eventualmente se replique uma ideia de há quase 70 anos que acabou por não se materializar, a criação de uma Comunidade Europeia de Defesa.
Emmanuel Mourlon-Druol, professor de História da Integração Europeia no Instituto Universitário Europeu, lembrou que, sendo a atual situação em termos de segurança particularmente grave, face à agressão militar russa à Ucrânia, "os apelos à autonomia europeia" em termos de Defesa não são novos, recordando mesmo uma intervenção nesse sentido do antigo presidente da Comissão Jacques Delors em 1993, durante a guerra na antiga Jugoslávia.
Também a antiga ministra da Defesa francesa Sylvie Goulard lamentou que, apesar de esta ser uma matéria "discutida há décadas", a Europa tenha "perdido tempo com discussões que não deram em nada" e não esteja hoje preparada para garantir a sua própria segurança "num mundo que claramente tornou-se mais perigoso do que era".
"A UE não está equipada, de facto", disse, apontando matérias como financiamento, capacidades, armamento, interoperabilidade e, sobretudo, "a questão mais complicada, que é o nível de decisão", pelo que defende que é crucial "pensar fora da caixa" para fazer progressos que se desejam rápidos, até porque, observou, durante a última campanha eleitoral, Trump foi muito claro quanto às suas intenções de desinvestir na NATO e na segurança dos Aliados.
De acordo com Federico Fabbrini, professor de Direito da UE e diretor fundador do Instituto de Direito Europeu de Dublin, o grande problema da Europa é que "os Tratados não foram concebidos para tempos de guerra", já que, além de requererem unanimidade em matérias de política externa e de segurança, "que inviabilizam respostas rápidas", têm disposições como a proibição do uso do orçamento comunitário para fins militares.
"A resposta da UE à guerra na Ucrânia mostra as debilidades a nível dos Tratados. A União até tomou algumas medidas inovadoras, mas em termos gerais a resposta foi desanimadora, em diversas formas", comentou, acrescentando que, na sua opinião, "a UE não está efetivamente pronta para tomar conta da sua própria segurança".
Destacando igualmente que há décadas que a Europa discute cooperação militar, Fabbrini apontou como exemplo da incapacidade europeia em garantir a sua autonomia o objetivo traçado pelo bloco comunitário na sua "Bússola Estratégica" - o plano de ação europeu adotado em 2022 com vista ao reforço da sua política de defesa e segurança até 2030 -- de criação de uma força de intervenção rápida de até 5 mil militares.
"No atual contexto, uma força rápida de 5 mil militares não é nada. E, mesmo assim, estamos já em 2024 e não temos nada", deplorou.
Concordando com Sylvie Goulart quanto à necessidade de "pensar fora da caixa", Federico Fabbrino avançou que uma possibilidade é "reavivar a Comunidade Europeia de Defesa", um projeto pensado no início da década de 1950, curiosamente na altura também sobretudo face à ameaça vinda da Rússia, então União Soviética, que previa um exército comum entre os seis países fundadores da UE, mas que acabou por não se concretizar.
De acordo com este especialista em direito comunitário, face à realidade atual, há um novo 'momentum' que a Europa deve aproveitar, mas a integração da Defesa europeia dificilmente passará por alterações aos Tratados, que exigem unanimidade dos 27 Estados-membros da UE, pelo que deve avançar com soluções alternativas, como esta "comunidade", composta apenas pelos países que nela queiram participar.
Para Franz Mayer, professor de Direito na Universidade de Bielefeld, certo é que "os europeus têm de tomar conta da sua própria defesa", pois o Presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, "não é fiável", ao ponto de até haver dúvidas sobre se "respeitaria o artigo 5.º da NATO", de intervir em defesa de um Aliado que seja alvo de ataque, o que "deixa os países bálticos, em particular, muito nervosos".
Alertando que a Europa se deve preparar para um mandato de Trump que será basicamente "sem lei", com pouco ou nenhum respeito pelas regras e compromissos, Mayer advertiu também que é de esperar da parte da nova administração norte-americana "uma abordagem completamente diferente relativamente à Ucrânia", que poderá em último caso resultar na derrota da Ucrânia na guerra que trava há quase três anos com a Rússia, com as consequências que tal teria a nível de ameaça para a Europa "e, provavelmente, mais uma crise de refugiados".