O gato e o rabo
No grande cadinho que é o Mediterrâneo, em especial a sua banda oriental, nasceram as três religiões que estão na base da construção do Mundo que conhecemos. Mesmo em regiões onde a sua presença parece diminuta, como na China ou na Índia, por exemplo, os valores dos Direitos Humanos, que tiveram origem nessas religiões, são invocados, ainda que não integralmente cumpridos.
Judaísmo, cristianismo, islamismo, por ordem cronológica, mudaram a face da Terra. Assentam no monoteísmo e partilham muitos valores, não obstante a acção os fundamentalistas, que em todas as épocas e em todos os quadrantes, tentaram e tentam impor a sua concepção da Religião, mesmo que o façam contra os seus próprios fundamentos.
A diversidade tem sido a regra ao longo dos tempos.
O Judaísmo actual pode dividir-se actualmente em três tendências principais: judaísmo ortodoxo (judaísmo haredi e judaísmo ortodoxo moderno), o judaísmo conservador e o judaísmo reformista, para não falar das cisões ocorridas ao longo da História, como os sefarditas e os askenazi.
O cristianismo, após as heresias dos primeiros séculos, acabou por se cindir entre católicos e protestantes, eles próprios divididos em diversas Igrejas e Comunidades. A coexistência não foi sempre pacífica, como se viu nas Guerras de Religião, nos séculos XVI e XVII, ou mais recentemente na Irlanda.
Os Islamitas cindiram-se logo de início entre xiitas e sunitas, e posteriormente surgiram diversas correntes (ismaelitas, sufistas, fatimidas, madistas, ibadistas). A coexistência também não foi sempre pacífica, com se viu na Guerra entre o Irão e o Iraque (1980-1988), e nos atuais movimentos fundamentalistas. Estes estão, em regra, na origem das guerras entre religiões diferentes ou dentro das religiões, embora interesses nacionalistas ou de grupos políticos e económicos tenham também o seu peso.
No caso de judeus e cristãos, História de Portugal narra bem os desencontros entre as duas comunidades, com o massacre (tipo pogrom) de Lisboa em 1506, provocado por dois frades dominicanos, depois presos e enforcados a mando de D. Manuel I; como também pelo estabelecimento da Inquisição em 1536, extinta apenas em 1821.
A oração da missa de Sexta-Feira Santa, onde eram referidos os “pérfidos judeus” só foi alterada em 1962, no tempo do Papa João XXIII, passando a ser “pela conversão dos judeus” e para que Deus “ilumine os seus corações”.
O pretendido clima de ecumenismo está longe de aceite e generalizado. Basta ver as declarações bombásticas de certos líderes políticos e/ou religiosos para sentir uma grande inquietação e incerteza. Qualquer incidente é desculpa para uma diatribe formal.
Exemplo disso foi a reacção de Benjamin Netanyahu às declarações do Papa Francisco sobre a guerra na Palestina e no Líbano (agora também na Síria e no Yemen). No Comité de Relações Exteriores e Defesa do Knesset (Parlamento), Netanyahu definiu os comentários do Papa Francisco como “vergonhosos” e de usar dois pesos e duas medidas. Só faltou referir a questão das relações do Papa Pio XII com a Alemanha Nazi.
Já em Setembro o pontífice dissera que “os ataques de Israel em Gaza e no Líbano são imorais e desproporcionados”, acrescentando que o exército israelita havia excedido as regras da guerra.
Ora, esta constatação está longe de ser isolada. Com a excepção dos Estados Unidos, directamente interessados no assunto, e alguns incondicionais, a esmagadora maioria dos países do Mundo concorda com esta análise.
Todos conhecemos aquele velho dito do “gato escondido com o rabo de fora”. O significado corrente é que, por mais que se tente esconder qualquer coisa, há sempre algo que desmascara o embuste.
Se Netanyahu referiu “dois pesos e duas medidas”, é porque alegava ter havido um julgamento diferente para um assunto análogo. Ou seja, de tanto querer intervir, acabou por colocar ao mesmo nível os dois lados da guerra, Hamas e Israel.
Assim sendo, ficou o gato de fora, com o rabo escondido.