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Crónicas

As resoluções de Ano Novo

Não há passagem de ano sem que jure que é desta que vou tirar a carta de condução e comprar um carro

Todos temos umas quantas resoluções para o momento em que o fogo começa a rebentar em São Gonçalo, daquelas que duram o instante em que o fumo esconde as luzes que anunciam o ano novo. Não há passagem de ano sem que jure que é desta que vou tirar a carta de condução e comprar um carro ou sem a promessa de fazer mais por um estilo de vida saudável além da inscrição no ginásio e o adoçante no café. E tenho estes propósitos desde o século passado, quando o fim do ano ainda se fazia em casa da minha tia Alice, entre a varanda com vista para a baía e a mesa da sala de jantar com os pratinhos com queijo e azeitonas.

O ano 2000 estava a chegar, mas a mim parecia-me tão longe como o futuro indistinto onde arrumava assuntos práticos como tirar carta de condução. No quintal, com o meu pai a dizer ao meu tio Humberto que o fogo tinha sido melhor que o do ano anterior, eu achava mais importante conhecer mundo e o meu tio nunca me negava uma boleia para o aeroporto no Fiat Uno azul escuro, o único carro novo que teve. E, de todas as vezes, lá estava ele, parado à porta, na curva, a resmungar com o meu atraso, enquanto eu descia as escadas com dois sacos de viagem carregados de roupa que, nos padrões de hoje, davam para mais de um mês fora de casa.

Viajar era, a meio dos anos 90, coisa de endinheirados ou de pessoas como eu que, em vez de fazer poupanças e investir num carro, acreditavam na ideia de que era preciso conhecer o mundo, mesmo que fosse uma estadia de 3 noites e 4 dias. Foi assim que fui a Paris e vi a Mona Lisa no Louvre ao lado de um grupo de turistas japoneses. E tive de fazer muitas contas ao câmbio de francos para escudos para me sentar num restaurante a sério e provar ostras. Os preços de Paris não eram para o meu bolso, mas vim de lá de alma cheia, tinha respirado o ambiente e aquele ar que as lojas de souvenirs junto ao Sena vendiam em frascos de vidro.

A ideia era boa para enganar turistas, mas eu preferi um carrossel e uma torre Eiffel para colocar na estante que o meu pai mandou fazer para os livros que, por essa altura, se acumulavam em torres no meu quarto. Aos 25 anos, se alguém me perguntasse, não havia hesitações ou dúvidas: o que me deixava feliz era viajar e ler. Também gostava de roupas e perfumes, mas essa era a minha maneira de compensar a adolescência da escassez e de todos os tostões contados. E gostei tanto de Paris, do que a viagem fez por mim, do que me fez sentir ao passear pelas ruas e entre prédios cinza pérola, com pessoas vestidas como as vitrines das lojas de moda que voltei para uma passagem de ano.

Foram as circunstâncias e a oportunidade, a vida é sempre feita assim, mas de uma certa maneira foram também os sonhos da mesma miúda na varanda da tia Alice, a ver o ano a entrar e a pensar que um dia podia estar lá, naqueles lugares que apareciam na televisão, como aquelas pessoas que festejavam com champanhe nos Campos Elísios e o faziam sempre uma hora antes de nós, lá em cima em Santo António. Os tempos eram outros, os escudos e os francos tinham sido trocados por euros e o mundo ficara mais perigoso com atentados.

O ar de Paris tinha mudado, mas continuava encantador apesar da estranheza da polícia na rua e no metro. E ali estávamos nós, no meio da multidão, numa noite fria a chegar primeiro ao ano novo. Não sei se havia por ali câmaras, se nos captaram e alguém reparou que éramos peixes fora de água, Eu com o nariz vermelho do frio; o Jorge com as luvas compradas de emergência na loja dos souvenirs, ambos pouco impressionados com o fogo de artifício por ter crescido a vê-lo rebentar por cima do letreiro luminoso em São Gonçalo. E também não sei se o meu pai e o meu tio Humberto pensaram em mim quando viram a Torre Eiffel na televisão, mas eu pensei neles entre a varanda e a sala de jantar, a brindar com espumante e a chegar a cadeira para a frente para ver melhor as dançarinas do Folies Bergère.

E todas as passagens de ano trazem-me memórias dos dois, das piadas que contavam e da rolha a saltar da garrafa, do abraço que me davam, enquanto eu prometia que ia tirar a carta para deixar de pedir boleia.