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Ser cristão em terras de Demo

O Tsitsernakaberd é um lugar especial.

Ao subir uma gentil e bonita colina repleta de vegetação, acedemos a um platô onde somos invadidos por uma estranha sensação de tranquilidade. Vemos uma cidade à distância, outras colinas e duas enormes montanhas, quase iguais. Uma maior com véu branco, outra menor no seu encalço, como se tratassem de uma mãe e a sua filha. Como eu já tinha subido ao cume da primeira, um arrepio de memória percorre-me à medida que avanço neste monumento. Aí temos o choque com a realidade, histórica e cultural, mas também religiosa.

Tsitsernakaberd é um memorial. Estamos num enorme pátio que encumeia a colina, uma pirâmide esguia indica o céu e uma enigmática estrutura, que vagamente me faz lembrar uma igreja. Ao caminhar ao longo dele, vem-me logo à memória três outras recordações que me marcaram: o memorial Mahnmal em Berlin, Birkenau em Cracóvia, Yad Vasham em Jerusalém. Neste momento a tranquilidade desaparece, e sentimo-nos incomodados. Como se estivéssemos a ser observados por milhares de pessoas, sem que consigamos vê-las.

Tsitsernakaberd representa a resiliência de uma nação onde vive um pequeno povo com uma grande história, que é tão resiliente como amaldiçoado pela história. Está dividido entre dois continentes, Europa e Ásia, e rodeado por nações muçulmanas hostis, que tentaram subjugá-lo, redoutriná-lo sem sucesso, até mesmo exterminá-lo em vários genocídios. Na essência, este povo está unido no seu âmago por uma firme crença cristã. Na terra que a Bíblia diz ser de Noé, a nação Arménia foi a primeira a proclamar-se cristã, 300 anos após o nascimento de Cristo, mesmo antes de Constantino o fazer em Roma.

Tão pequeno e humilde era o seu povo, e tão remota era a situação desta nação, que lhe permitiu em certa medida, escapar à omnipresença dos seus poderosos vizinhos. Os persas a oriente, os muçulmanos otomanos a ocidente e, em certo momento, até aos mongóis a norte. Mas tudo mudou em 1884 quando o sultão Abdulamide II iniciou o primeiro genocídio arménio, que durou mais que uma geração, onde se perdeu um terço da população (1,5 milhões de vidas) e metade do território. Foi o vislumbre daquilo que ao longo do século XX ia acontecer na Ucrânia de Estaline, na Alemanha Nazi, no Camboja, na Jugoslávia, no Ruanda, entre outros.

A este castigo às mãos do islão, segue-se logo outro às mãos de Estaline que invade a Arménia nos anos de 1920, incorpora-a à URSS e impõe o comunismo. Este, que obviamente inclui o ateísmo, leva à perseguição e deportação de todos aqueles acusados do culto cristão. Mais uma vez o povo arménio volta a praticar as suas crenças em segredo e dentro das paredes das suas casas.

O Tsitsernakaberd é o Memorial do genocídio arménio e é dedicado às suas vítimas. A montanha Ararat, a 5167 metros (e o seu companheiro “pequeno Ararat”) é a presença imponente deste local, e símbolo da nação Arménia, isto apesar da montanha ter sido anexada pela Turquia e hoje uma fronteira fechada divide a Arménia da sua montanha histórica.

Construído em 1967 por uma URSS (e Rússia), que admitiu Mea-culpa, e reconheceu o genocídio e a forma como o povo arménio foi tratado, é hoje ponto obrigatório de dignatários e visitantes. Em vez, a Turquia nunca o reconheceu e até nega qualquer genocídio arménio. Portugal e a grande maioria dos países europeus e americanos o reconhecem, e mantêm boas relações com esta pequena nação perdida nos planaltos e cordilheiras do Cáucaso.

Se a Europa, e o seu catolicismo, não são exemplos históricos de tolerância religiosa, seja pelas cruzadas aos infiéis, seja pela “santa inquisição”, seja pela evangelização colonial muitas vezes forçada, a verdade é que hoje as suas nações evoluíram e respeitam a liberdade religiosa, sendo portos de abrigo de tolerância e integração.

A nossa Constituição determina que a liberdade de consciência e pensamento, de religião e de culto é inviolável, e assegura que ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções, ou até prática religiosa. Nos diferentes índices de liberdade religiosa, Portugal está entre os mais bem cotados, bem acima de países como os Estados Unidos, Brasil, França, Espanha e Alemanha, e está na realidade, nos antípodas dos países da zona do Golfo, Índia, Israel ou Coreia do Norte, entre outros. No entanto, alguns desafios vislumbram-se no horizonte, com o crescente populismo de políticos e políticas de hegemonia rácica e religiosa.

Veremos se a História continua a nos ensinar lições…