O sapatinho
O meu irmão dizia que na guerra havia feridos e as minhas bonecas eram baixas de um grande conflito
O cão ladrou no quintal e já contei uns dois autocarros a fazer curva, enquanto puxo pela cabeça atrás da memória do melhor presente dos natais cá em cima, no Laranjal, quando o meu pai fazia um presépio até ao tecto na esquina da sala onde montámos o pinheiro. E não me lembro, tenho imagens vagas de um serviço completo de loiça em ponto pequeno e que se partiu quase todo antes do ano novo. Houve umas bonecas, uma sala com cadeiras e uma mesa, um fogão de lata onde entalei os dedos, mas quando os senhores da saúde escolar deram pela minha dislexia, trocaram os brinquedos por livros.
Ler era, na versão da minha mãe, como tomar um remédio para uma doença, mas quando decidiram tratar-me o defeito já as minhas bonecas integravam um batalhão de combate administrado pelo meu irmão. Ou tinham os olhos tortos de andar às cabeçadas umas com as outras ou tinham perdido o pio e algumas tinham cortes nas pernas e nos braços. O meu irmão dizia que na guerra havia feridos e as minhas bonecas eram baixas de um grande conflito pensado à imagem dos documentários da II Guerra Mundial. A verdade é que os nossos brinquedos acabavam sempre por parecer um destroço, até os carrinhos do meu irmão que, quando quis ser mecânico, os destruiu com uma pedra para ver como eram por dentro.
E ficavam velhos e estragados porque ninguém nos tirava da mão para arrumar em cima do armário, dentro da caixa, onde ficavam sempre novos, mas que nunca seriam nossos. Não sei dizer qual foi a boneca mais bonita, mas lembro-me de brincar muito naqueles dias a seguir ao Natal e essa é uma memória de felicidade, uma imagem que vem da infância e vem colada a tudo o que havia pela Festa na casa do Laranjal como aquele aroma de bolos na manhã do dia 25 de Dezembro. E, em todos esses dias, houve um brinquedo ou um livro no sapatinho, na nossa medida, que nunca fomos ricos e a minha mãe nunca gastava mais do que devia.
O que nunca faltou foi o carinho e o calor do sorriso, mesmo que a minha mãe não fosse o exemplo de dona de casa e deixasse restos de farinha na cozinha e na saia, mesmo que a casa só ficasse arrumada depois do almoço. Quase a consigo ver, aqui, nesta casa, desesperada por ser véspera de Festa e ainda não se ter lavado o quintal e a entrada, a vergonha que era; quase a oiço dizer que lhe fazia falta outra filha e um marido mais prestável, um filho que fosse crente e não fizesse tantas perguntas sobre o Menino Jesus que nunca crescia. A minha mãe era católica e não gostava de ter dúvidas de fé e menos ainda naquele dia em que havia tanta loiça para lavar na pia da cozinha.
E depois, num passe de mágica, a casa entrava nos eixos. Havia bolo fresco, salada de fruta, pudim e um almoço de galinha. O meu pai adormecia no sofá, a minha mãe tratava da cozinha e nós íamos para o quintal brincar ou rebentar bombas ou beber tampinhas de licor às escondidas, que não se podia, mas sabia bem. O dia terminava sempre em casa das minhas tias, de volta de uma canja e a ver o Telejornal e como era o Natal das outras pessoas, noutras terras. O nosso era assim, tão sem cerimónias, com poucos presentes, tão normal como os dos vizinhos onde o frio era só aquele que dava na cara quando se voltava a casa, a nossa, na curva do caminho, um fim de mundo onde vivi natais muito felizes.