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No dia em que este artigo é publicado perfazem exatamente trezentos e trinta e três dias desde que um avião militar aterrou na Região Autónoma da Madeira, e, com ele, desembarcou uma manada de Procuradores do Ministério Público, Juízes, e agentes da Polícia Judiciária.

Passados trezentos e trinta e três dias, a Justiça nada mais disse. Constituiu arguidos quem tinha de constituir, e nada mais se soube. Nada mais se veio a descobrir. Passados trezentos e trinta e três dias do maior, e mais deprimente, espetáculo e foguetório mediático, ninguém foi acusado. A Justiça pura e simplesmente não produziu. Não avançou.

Isto traz, de caras, duas implicações óbvias: a primeira, a alimentação perpétua dos populismos que se baseiam na política de terra queimada para se regozijar com a desgraça alheia; a segunda, a contínua e permanente falta de explicações relativamente às suspeitas que foram lançadas sobre as criaturas que viram ser atirados sobre si anátemas que, até hoje, não foram esclarecidos. E, repare-se que esse esclarecimento é devido à própria justiça, mas é também esta última a única competente para investigar, acusar e julgar.

Desde 24 Janeiro muitos foram os carrascos que procuraram vicejar em todas as frentes, num lamaçal inquietantemente desconhecido, próprio de um abrigo para porcos, e que, por isso, só estes últimos sabem como por lá andar.

A questão essencial, e o ponto de discussão em todas as mesas deste Natal, será: alguém que é constituído arguido, ou até mesmo acusado, relativamente à alegada prática de determinados crimes deve ou não demitir-se do cargo político que ocupa?

Há uns tempos a minha resposta seria claríssima: sim. Hoje, confesso, que tenho as minhas dúvidas. E, estando nós a caminho de mais umas eleições regionais – as terceiras em cerca de dezassete meses –, partilho consigo, caro leitor, o que faz duvidar de uma resposta que há uns meses atrás seria perentória.

Coloquemos um cenário em que a justiça, no estrito cumprimento das suas obrigações, investiga Beltrano – que, por sinal, ocupa um lugar político – pela prática de um crime. Do ponto vista popular, o desgraçado estará condenado a partir do momento em que o Correio da Manhã noticie este facto – isto é ponto assente. Beltrano – suspeito de cometer o crime A, B ou C – é constituído arguido, é acusado, é julgado, e a sentença transita em julgado. Tudo isto em cerca de 3 ou 4 anos – e note-se que este período temporal é já confortavelmente vantajoso para quem acusa. Neste cenário, a minha voz juntar-se-ia ao coro que num arpejo suplicam pelo afastamento de Beltrano até à conclusão do processo judicial.

Para que isto acontecesse seria necessário, no mínimo, um reforma estrutural que conhecesse a reformulação de um sistema de justiça que está caduco, bafiento e decrépito. Para deixar bem claro, a independência do Ministério Público e dos Tribunais, bem como a separação de poderes, NUNCA poderiam ficar em causa. E, perguntam-se os portugueses porque razão o poder político receia tocar na justiça. Porque PSD e PS estão agarrados ao politicamente correto, amedrontados com os populismos e demagogias que, certamente, adviriam em consequência da proclamada reforma estrutural, e, acima de tudo, aterrorizados com a eventualidade de se perpetuar no seio do eleitorado, que lhes permite formar maiorias, a convicção da existência de um clima de proteção e blindagem dos seus camaradas.

Acontece que, no cenário real, Beltrano não terá a sorte de conhecer uma justiça célere, eficaz e produtiva. Antes pelo contrário. Passará por uma experiência em que se deparará com os espíritos mais rebarbativos que transportam uma cultura das vestes negras em que o respeito é subitamente sobreposto pelo medo. Experiência essa que durará por um período de tempo humanamente incalculável, mas inquestionavelmente duradouro.

E aqui começam as dúvidas. Olhemos para o caso de José Sócrates, que dura há cerca de 10 anos e o julgamento, até à data, ainda não se iniciou. Houve, estou certo, inúmeras lacunas no processo e na atuação do Ministério Público relativamente ao caso judicial que maiores danos causou à reputação de Portugal. Mas a morosidade processual deve-se aos dois lados, a quem acusa e a quem defende – é inequívoca a utilização, por parte da defesa, de uma estratégia que olha para os expedientes dilatórios, que promove a eternização do processo até que tudo prescreva, como a bala de prata.

Agora, será que Beltrano, arguido num caso judicial sobre o qual lhe recaem suspeitas da alegada prática do crime A, B, ou C, que goza da presunção de inocência até trânsito em julgado, que não tem na justiça a certeza de que esta produzirá serviço num tempo minimamente razoável, que não procura alongar o processo para com isso ter ganhos de causa, deverá ficar diminuído nos seus direitos civis, morais e políticos? Deixará de ter, automaticamente, condições políticas para o exercício do cargo que ocupa? Será impedido pela vontade popular de permanecer no cargo, ou pela vontade alheia dos seus opositores? Deverá Beltrano, consciente da sua inocência, ficar à mercê da fraca produtividade de quem o investiga? Ou deverá Beltrano escudar-se na presunção de inocência própria de um Estado de Direito?

É incontestável que não recair suspeita da prática de qualquer crime sobre Beltrano contribui para a consolidação de uma autoridade política que é naturalmente distinta no caso da sua existência. Mas essa autoridade política pode vir a ser restaurada, e reposta. Para isso é preciso que a justiça funcione, avance, investigue, acuse e julgue para que tudo se esclareça – rapidamente, de preferência. A Democracia agradece.

Tenho mais dúvidas do que certezas, mas pareço isolado já que a esmagadora maioria dos marrecos que por aí pululam são portadores das mais obtusas certezas, sem que tenham a honestidade intelectual delas duvidar. Há quem goste do debate com leviandade, ligeireza, e precipitação – admito a preferência pela substância, reflexão e ponderação.

Que não se tenha nunca a ideia de que criticar a justiça é estar ao lado dos criminosos. Nada mais falso.