A fiscalização municipal tinha mesmo de atirar para o lixo as ramagens de Natal apreendidas?
Uma acção de fiscalização à venda ambulante no Funchal, promovida pela Câmara, apanhou ontem de surpresa vendedores que habitualmente trazem para a cidade ramagens alusivas à época natalícia, uma diligência que suscitou reparos e indignação dos comerciantes e transeuntes justamente pelo facto de a brigada de fiscalização ter autorizado que os bens apreendidos fossem enviados para o lixo num carro de recolha de resíduos que entretanto foi chamado para remover os artigos do espaço público.
A acção dos fiscais aconteceu logo depois de terem se dirigido à Rua Dr. Fernão de Ornelas e do Ribeirinho para um normal procedimento de fiscalização e numa rotina de se inteirar se os vendedores possuíam licenciamento, tendo, nesse momento, verificado que parte dos que ali estavam não estavam documentados para venda ambulante. De imediato foi dada ordem de apreensão do artigos. Em bom rigor há espaços para a venda deste tipo de produtos natalícios junto à Empresa de Electricidade da Madeira, e para esses foram concedidas licenças pelo município.
A acção gerou descontentamento por parte de alguns dos comerciantes, muitos deles vieram de fora do Funchal para vender os seus produtos na baixa da cidade, um costume de anos nesta época vendendo ramagens, pinheiros, azevinho, ‘cabrinhas’, ‘sapatinhos’ entre outros artefactos que servem de adereço ou ornamentação da tradicional lapinha madeirense.
No entanto ouviram-se críticas: “As pessoas vêm para aqui, de longe, vender as suas coisinhas e são logo multadas. Deu dó ver que ficaram sem nada quando muitas vezes só tentam ganhar algum dinheiro para passar melhor o Natal”, referiu um popular que assistiu à apreensão, considerando que “a Câmara Municipal do Funchal poderia ter doado o material apreendido a uma instituição em vez de deitar tudo no lixo”.
Ora o fact-check de hoje segue esta afirmação popular. O quadro normativo vigente permite que o material apreendido pudesse ter sido doado a uma instituição?
No artigo 186.º do Código de Processo Penal, na parte dos meios de obtenção da prova, capítulo das apreensões, Restituição dos objectos apreendidos, no seu número e seguintes que “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário”, ou “logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objectos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado. As pessoas a quem devam ser restituídos os animais, as coisas ou os objectos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se não o fizerem, se consideram perdidos a favor do Estado.
Isto aplica-se para os processos-crime. Neste caso é processo contra-ordenacional que não se sabe ainda se foi levantado o respectivo auto uma vez que a CMF não respondeu ao nosso pedido de informação
Mas vamos ao que diz o Regime Jurídico das Contraordenações Económicas. O artigo 49.º sobre a apreensão de bens ou seres vivos e de documentos aponta que a autoridade administrativa competente pode, sem audição prévia do interessado, determinar a apreensão de bens ou seres vivos e de documentos, que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de uma contra-ordenação económica ou que em consequência desta foram produzidos, ou quando tais bens ou seres vivos representem, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, perigo para a saúde e a segurança de pessoas e bens ou exista sério risco da sua utilização para a prática de um crime ou de outra contra-ordenação, ou quaisquer outros que forem susceptíveis de servir de prova.
Também a autoridade administrativa pode determinar a apreensão do produto resultante da venda dos bens que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de uma contra-ordenação económica ou que em consequência desta foram produzidos, caso esta se tenha consumado.
De resto o artigo 50.º parece ser claro quanto indicando que “nos casos de risco de deterioração dos bens ou seres vivos, de conveniência da sua utilização imediata para abastecimento do mercado, de perigo para a saúde ou para o bem-estar de animais ou, em ambos os casos, de perigosidade, os bens apreendidos, logo que se tornem desnecessários, podem ser afectos a finalidade pública ou socialmente útil ou destruídos de forma imediata, por ordem da autoridade administrativa competente.
E o artigo seguinte diz ainda que “o destino dos bens referido nos números anteriores, quando decidido por entidade fiscalizadora diversa da autoridade administrativa competente nos termos do presente regime, só pode ser determinado após consulta prévia e desde que não seja formulada oposição por esta última”.
Em resumo os artigos podem ser "destruídos de forma imediata" mas também poderiam "ser afectos a finalidade pública ou socialmente útil” sendo certo que, no caso da determinação de "destruição de forma imediata", tal só deve acontecer "após consulta prévia e desde que não seja formulada oposição”, o que não quer dizer que tenha incumprido a lei.
Optou-se por ordenar a destruição imediata por entender que havia "risco de deterioração dos bens" e não reconheceu valor ao bem apreendido para doá-lo para "finalidade pública ou socialmente útil". Isto apesar de, conforme se lê no 2 do artigo 50º, os bens em causa não apresentarem "perigo para a saúde pública" nem de “perigosidade" justamente porque eram ramagens de Natal, o que poderá revelar, em última análise, excesso de zelo e falta de bom senso.
O DIÁRIO contactou ontem a Câmara do Funchal para saber o motivo da apreensão, se foi elaborado processo de contra-ordenação com aplicação de coima, assim como se as ramagens apreendidas não poderiam ser doadas a uma instituição em vez de descartadas no lixo, mas não obteve reposta em tempo útil.