Quando o olhar está incompleto
Não somos incompletos. Nem ‘eles’, nem ‘nós’! O nosso olhar é que pode ser incompleto. O nosso coração é que pode ainda não ter expandido e viver enclausurado na opressão das expectativas, da imagem e do sucesso vigentes. E desde este lugar, é impossível acolher uma pessoa que consideramos ‘menor’.
Imaginemos que o génio da ciência, Stephen Hawking, tivesse nascido e vivido em Portugal… O cientista diagnosticado desde os 21 anos com esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença degenerativa que iria progressivamente paralisar os seus músculos, e segundo o médico, o levaria à morte no máximo em três anos, teria, garantidamente cumprido, ou até, antecipado o prognóstico e teríamos perdido a oportunidade de evoluir enquanto humanidade, graças às descobertas que Hawking nos ofereceu.
E isto porque, se fosse português e vivesse em Portugal, Stephen Hawking teria sido atirado e (que remédio) feito um esforço sobre-humano para caber na caixa apertada e obsoleta do pensamento perpetuado, acerca da deficiência e do que é ser portador da mesma. Ou seja, o cientista, em vez de poder manifestar no mundo os seus dons de génio, teria (sobre)vivido confinado a uma sala, numa das poucas instituições a funcionar e que se autoproclamam inclusivas, a montar puzzles com os seus pares. Seria mais um ‘coitadinho’ e, provavelmente, ouviria o que eu, mãe de uma adolescente portadora de deficiência cognitiva e intelectual, escutei mais do que uma vez, assim como a minha filha mais nova e os meus pais escutaram, quer de pessoas próximas, quer de estranhos: “Mas porque é que Deus Nosso Senhor deixa vir ao mundo estes entes assim?!” Não bastasse tamanha ignorância e falta de respeito para com a minha filha (e não só) que, tal como eu, escutava o comentário, também ouvimos, menos mal que apenas de uma pessoa: “A culpa é da mãe dela!”, sem que a pessoa tivesse esclarecido alguma vez como validava tal impropério, quando nem a mais avançada medicina nacional e internacional, encontra a causa do atraso. Enfim. É o que é. Denota bem que estamos a anos luz de aceitar e reconhecer que as pessoas portadoras de deficiência têm direitos! Humanos! Têm direito, tal como todas as pessoas, a viver em igual valor e dignidade!
A menorização dos direitos e das capacidades das pessoas é um perigo! E é isso que me parece importante assinalar, hoje em particular, quando o calendário celebra o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. Este dia, proclamado em 1992 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, pretende chamar a atenção para as questões de fundo que envolvem as pessoas com deficiência e mobilizar o apoio para a dignidade, direitos e bem-estar das mesmas. Direitos que hoje, mais que nunca, parecem estar ameaçados por uma visão micro, distorcida, caritativa e assistencialista da deficiência.
É urgente reafirmar os direitos humanos (de todos) enquanto universais e inalienáveis. Passaram 30 anos desde a proclamação deste dia e as vitórias conquistadas (a custo!) são ínfimas e em risco de extinção, quando mergulhamos em profundidade, com honestidade, no quotidiano das pessoas com deficiência e das suas famílias.
Os retrocessos nas políticas de inclusão são visíveis, particularmente na educação. Alunos inseridos em unidades de ensino especializado, em contexto de multideficiência, que acabam por viver, demasiado tempo, afastados de outros, ditos ‘normais’, em todos os contextos. A intenção é positiva, mas falha a abertura à convivência com o todo, para que se perceba, finalmente, que afinal, somos todos diferentes e todos especiais. Para que fique claro, de uma vez por todas, que cada um traz um dom próprio e que só em conjunto se manifestará para o bem comum.
Falha a formação séria de professores especializados (é inacreditável que hoje, se formem professores de ensino especializado, oriundos das mais variadas áreas, em três meses, em cursos on-line que servirão para acompanhar alunos de toda e qualquer patologia). Arrepia a alma. Falha ainda, o acesso célere às consultas das especialidades, o acesso célere e em número às terapias e terapêuticas que cada caso exige, ao acompanhamento psicológico, ao direito cuidadores de acompanharem, por exemplo, os filhos nos processos essenciais à verdadeira inclusão. Há pais que não sabem sequer, que têm o direito e o dever de contribuírem para a elaboração do Programa Educativo Individual (PEI) e do Relatório Técnico-Pedagógico (RTP) do filho portador de deficiência e, ainda há escolas que não só não informam os pais, como os impedem de participar nestes processos. Tudo isto é criminoso. Os obstáculos à autodeterminação e à vida independente onde se inclui o acesso à saúde, à educação, ao trabalho, à justiça, ao lazer, à participação civil e política deve obrigar-nos a uma dura reflexão, e enquanto sociedade global, deve impelir-nos a agir urgentemente, desde uma nova perspectiva e olhar amplificado!
Mais uma vez, começa nas famílias, estende-se às escolas e à comunidade. Filhos e alunos (mais) especiais exigem pais, famílias, professores e educadores (ainda mais) especiais: pais (e demais) de coração escancarado, sem medida, pais, familiares, amigos, professores, terapeutas, médicos à prova de bala, (sobretudo) pais verticais e descarados para não corresponder à pressão silenciosa e medrosa de familiares, amigos, colegas e afins; pais que se dispõem e aceitam ser sempre curiosos e eternos aprendizes; pais que onde os professores vêem um problema e os médicos uma deficiência, os pais reconhecem um talento; pais que, através da deficiência dos seus filhos, aceitam curar as suas próprias deficiências.
Assusta-me seriamente, a arrogância e incompetência (a desumanização, vá) de muitos decisores, que sem consultarem os que verdadeiramente vivem na pele a deficiência e os danos colaterais das decisões, implementam políticas que rotulam, aprisionam e excluem sob o título de ‘inclusivas’. São as mesmas que abrem as portas ao perigo de cair num mundo faz-de-conta e de passarmos (todos!) ao lado do que nos é pedido, de nos arriscarmos a falhar rotundamente a vida cheia de vida que continuamente nos é oferecida a cada dia.