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#8Euros

1. Jackpot?

Aqui estamos nós, mais uma vez, perante a indignidade da política caseira, que se disfarça de legalidade e de virtude. Em 2015 a Assembleia Legislativa da Madeira decidiu, num momento raro de bom senso, cortar no “jackpot” que era entregue aos partidos. Uma decisão que, naturalmente, provocou rebuliço entre os seus beneficiários, mas que tinha uma razão de ser: uma tentativa, talvez desesperada, de credibilizar o sistema. No entanto, há um pormenor — um detalhe esquecido ou deliberadamente negligenciado — que veio complicar as coisas.

No Portugal dos partidos únicos e centralistas, não existem partidos regionais, pelo menos é isso que nos diz a Constituição. Mas quem olhar para a paisagem política madeirense verá algo completamente diferente: PSD Madeira, PS Madeira, o CDS Madeira, o Chega Madeira, IL Madeira e por aí fora. Pequenos feudos locais que, à sombra da âncora nacional, se permitem inventar “estatutos próprios”, criando uma espécie de ficção legal que beira a ilegalidade. No entanto, estes estatutos são apenas uma cortina de fumo, porque a única coisa que podem ter, em rigor, são regulamentos internos que os organismos nacionais aceitam ou sobre os quais fazem vista grossa.

Este sistema engenhoso, montado ao longo de anos, assegurou que os partidos recebessem subvenções regionais em duas modalidades: uma porção grande e significativa, que é atribuída aos partidos com assento parlamentar, e outra parcela, destinada a custear o funcionamento dos Grupos e Representações Parlamentares. E foi sobre esta última que se propus uma mudança.

A verba para as “despesas de funcionamento” está congelada desde 2015 nos simbólicos 1095 euros. Hoje, quase não chega para pagar um salário mínimo a uma assessora absolutamente imprescindível. E é aqui que entra a indignação moral e a exigência de “justiça”: em Janeiro, prevê-se um aumento do ordenado mínimo, e se nada for feito, as assessorias passarão a receber menos do que aquilo que é legalmente definido como o mínimo. Uma situação que não é apenas desconfortável; é um insulto à dignidade de quem trabalha. Notem bem, a partir do mês que vem a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira vai pagar a trabalhadores que tem na sua lista de pagamento, menos que o Ordenado Mínimo. E quem, ao não perceber isto, se abespinha, certamente terá um problema.

Podemos ter muitas dúvidas sobre como são gastas as verbas atribuídas aos partidos — e eu, pessoalmente, tenho todas — mas é importante não confundir as coisas. O dinheiro de que aqui se fala não é o que entra directamente nas contas dos partidos. Não, este é um fundo distinto de valor muito, mas mesmo muito inferior, teoricamente reservado para os grupos e representações parlamentares poderem fazer o seu trabalho. O problema é que, para além da miséria do valor, a norma que fixa este apoio é anacrónica: aplica-se em 2024 o valor do salário mínimo de 2015. E isto não faz qualquer sentido.

Repito, são 1093 € por mês para pagar pessoal, que neste momento garante um salário mínimo à minha assessora, e do qual sobram para outras despesas da Representação Parlamentar uns magníficos 8 €. Obviamente que se pode perguntar porque é que não se vai buscar parte aos mais de 4 mil euros que entram directamente na conta do partido todos os meses e por deputado. Mas a isso não me compete responder.

Sejamos claros: os assessores parlamentares da Assembleia Regional da Madeira devem ser, provavelmente, os únicos trabalhadores desta região que não têm um aumento desde 2015. E o que está aqui em causa não é o tal “jackpot” que alguns, de má-fé e de modo irresponsável, evocam para descredibilizar esta reivindicação. O que está em causa é a reposição de uma mínima decência, o reconhecimento de que quem trabalha deve ser tratado com dignidade. Mas não é disso que vive a política madeirense. Vive do favor, da relação servil, do prémio ocasional entregue a quem se mantém calado e agradecido.

E, assim continuaremos. Ao invés de se abordar estas questões claramente, opta-se frequentemente por contorná-las. Por motivos de conveniência política e receio de enfrentar os problemas de frente, estes arrastam-se no tempo. Talvez os políticos tenham, de certa forma, algum receio justificável, ao observar as manchetes sensacionalistas que circulam por aí, destratando o que devia ser tratado com dignidade.

E agora por aqui me fico, certo de que me expliquei com a clareza que a questão exige. Voltarei ao assunto no momento e no local que entender serem os mais convenientes.

2. Os Adiantados de Espírito

Andam por aí uns quantos, presumidos e enfatuados, que se pretendem como a nova consciência crítica da política madeirense. Gente de sala, de pantufas, de tertúlia iluminada, que olha para o povo com o paternalismo afectado de quem acha que nasceu predestinado para endireitar o mundo. Uns coitados – sim, coitados – que, se a soberba ganhasse eleições, já estariam sentados nas cadeiras do poder, de gravata bem apertada, a mandar bitaites sobre a superioridade das suas ideias enquanto desprezam o cheiro do suor que faz a Madeira.

Uns elitistas, estes. Não ouvem a rua, porque a rua lhes causa incómodo, com os seus ruídos, com as suas queixas legítimas, com os seus problemas reais. Não falam com os madeirenses porque, no fundo, os desprezam. Preferem os seus iguais, as suas bolhas de condescendência intelectual, os seus copos de vinho fino enquanto discutem o que seria bom para o povo – desde que esse mesmo povo se cale e aceite. Sempre ao lado do povo, porque no meio dele é maçador e tem cheiro.

E, sobretudo, não estão onde estamos nós. Não estão onde estão os que trabalham, os que lutam, os que vivem de peito aberto e coração entregue a esta terra. A Madeira é nossa, sim. Deles, apenas em teoria, um amor platónico e condescendente. Amorfo e de conveniência. Não amam esta terra, não a conhecem, não a sentem. Falam de longe, em tom professoral, como quem lê biblicamente um livro mal escrito, e acham que isso basta para substituir o pulsar da vida madeirense.

Não sabem onde fica o Lombo do Urzal nem a Fajã das Galinhas, os Maroços ou o Rochão. São Vicente é longe e a Santa cheira a Feira do Gado. Nunca entenderão o sabor do entrecosto da Barraca da Conceição no Mercado do Santo, nem como sabe bem lambuzar os dedos com umas patinhas na Ribeira Brava ou saborear um vinho do Porto Santo com dentinho de ovo de codorniz e perregil. Subir às serras da Camacha e degustar uma sopa densa na Shakira é mais longe do que trepar o Evereste e ir à Alegria comer um macarrão é como ir a Marte. A Madeira é muito mais do que as esplanadas do centro do Funchal e os cafés de São Martinho. A Madeira não se fica por malas Louis Vitton e botas Gucci. Onde há um madeirense há Madeira e não perceber isso é não perceber nada. É andar aos papéis.

Há, nestes profetas da virtude alheia, uma estranha aversão à realidade. Vivem num mundo ideal, povoado por ideias deslumbrantes e princípios distorcidos, onde impera a maldade, a maledicência e a conspiração, onde as pessoas reais, com as suas contradições e fraquezas, não têm lugar, graças a Deus. Não percebem que a política não é um exercício de manigância, nem uma competição de moral duvidosa. É antes o duro trabalho de lidar com o possível, de construir com as ferramentas que se têm à mão, e não com as que se desejariam ter. Mas isso, claro, seria admitir que o mundo não se dobra às suas vontades, e essa humilhação não estão dispostos a aceitar.

E o que fazem então? Refugiam-se na crítica constante, no comentário venenoso, no eterno papel de espectadores iluminados, no nada fazer achando que tudo fazem. Propõem tontices, não agem, não resolvem – porque isso implicaria sair do conforto das suas certezas absolutas e sujar as mãos na lama da realidade. Preferem apontar o dedo aos outros, aos que têm a coragem de arriscar, de decidir, de errar até, mas sempre com a coragem de quem vive no mundo em vez de se esconder atrás de uma qualquer coluna de opinião ou de um auditório dócil e reverente. Estes senhores – e senhoras, é preciso incluí-las – vivem para si mesmos, para os seus pares, e para a ilusão de que o seu desprezo é uma forma de grandeza. Não é. É apenas fraqueza mascarada de erudição.

Fazem da apatia uma máscara e do cinismo uma virtude. Quando a pose de consciência crítica já não cola, refugiam-se nesse estilo blasé de quem não se importa, de quem olha para o mundo com o tédio de quem já viu tudo e não acredita em nada. Mas a verdade é que a indiferença é tão falsa como a superioridade moral que ostentam noutras ocasiões. Fingem estar à margem, acima do “espectáculo grotesco” da política e da vida quotidiana, mas não perdem uma única oportunidade para marcar presença, para lançar a sua ironia estéril, para serem reconhecidos como os espectadores inteligentes do “circo” que desprezam. São sempre os mesmos: os que criticam sem agir, os que depreciam sem entender, os que falam sem ouvir. Uns impostores que nunca sujam as mãos, mas que têm sempre algo a dizer sobre quem faz acontecer.

Deixem-me ser claro: este tipo de gente nunca foi solução para nada. São um ruído de fundo, uma vaidade inconsequente. Governarão na sua imaginação, ganharão as suas eleições nos salões privados, mas nunca na alma de quem faz a Madeira todos os dias. E isso é o que mais lhes dói.