Essência
Não gosto de dar ênfase à data da morte. É, para mim, apenas um momento de reservada introspeção. Prefiro assinalar e recordar a data do nascimento das personalidades que mais me marcaram. É, por isso, que prefiro recordar Francisco Sá Carneiro no dia em que nasceu: 19 de julho, curiosamente o dia do Parlamento Regional.
De todo o modo, admito que as circunstâncias históricas imponham que se assinale a data do seu desaparecimento físico, 04 de dezembro, na qual, normalmente, se concentram todas as homenagens. Da tragédia à imortalidade, fica a “memória inspiradora”, fica o legado superior, muitas vezes encarnado nas palavras, nas expressões e nas afirmações fortes, tantas vezes esquecidas e poucas vezes praticadas ou cumpridas por muitos dos que tinham o dever e a obrigação de o seguir nas ações: “Primeiro Portugal e só depois os partidos e cada um de nós”, disse. Só assim a política faz sentido. O desvio reiterado da essência da missão que a afirmação representa tem levado à perda de confiança numa classe política que, muitas vezes, se encolhe e se deixa levar por outros interesses. A política não é poder, conforto, refúgio ou exílio, mas sim causa, vocação, serviço e missão. O povo resignado assiste, mas não desiste e não perdoa. E tem de manter viva alguma esperança, porque a essência não se perde na memória de quem resiste, mesmo que em silêncio.
E é na desilusão e na crença que tudo pode surgir. O prenúncio da candidatura do Almirante Henrique Gouveia e Melo surge precisamente nesse contexto, ou circunstancialismo específico, no qual, perante a crise de confiança no sistema partidário, emerge a imagem da personalidade sóbria e do carácter sobre o entretenimento, a disciplina sobre o laxismo, o coletivo sobre o individual. Prevalece o patriotismo, a firmeza e a esperança.
Na falência galopante do sistema partidário e do quadro legal que o consagra e suporta, poderão surgir novos paradigmas. Confesso que tenho muitas dúvidas relativamente às “frentes” ou “movimentos para enfrentar os partidos estabelecidos”, pois a experiência diz que acabam por padecer dos mesmos males dos partidos. Acredito na sua essência, mas receio que se transformem em plataformas de acolhimento de ressabiados sem percurso pessoal relevante, mergulhados no desespero do discurso óbvio de trivialidades de arrasto. Isso não. Tenham paciência. Para estar na política é preciso substância comprovada e percurso pessoal digno. Não pode ser de outra maneira e não podemos deixar de acreditar que só pode ser assim. Julgo que, neste momento, são os próprios partidos que têm de mostrar novos paradigmas de crescimento e de mobilização. Não se podem fechar em búnqueres blindados, desligados dos militantes e da sociedade, que são apenas refúgio de alguns.
“Primeiro a Madeira e só depois os partidos e cada um de nós”. É nesta inspiração adaptada que tudo se deve construir e reconstruir. É tempo de reflexão, orientada para um caminho sério, justo e consistente que nos permita respirar ar puro. Escolherei o meu caminho, aquele que quero percorrer por convicção. Mantendo sempre a inspiração de Francisco Sá Carneiro, “considero-me muito mais a pessoa que resolveu trabalhar a nível da intervenção ética do que um político”.