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Crónicas

Pode ser por aqui...

Quando percebemos que o nosso contributo é importante e apreciado, não temos tanta necessidade de estar constantemente a defender a nossa integridade, de estar do contra ou de questionar os pedidos que nos são feitos

“Ah que amor, tão obediente, que linda menina!”, dizia a mãe que não usa redes sociais porque o marido não deixa. “O pai olha para ele e vê-se bem o respeito que lhe tem. Muito bem!”, dizia o professor que se encolhe assim que vê o diretor executivo da escola. E, se afinal, nada disto for sobre respeito?! E se for sobre medo! Pois…

Às vezes, até parece haver mais pais interessados no tema da parentalidade e educação. Não sei se há, de facto. Na verdade, o que sinto é que (e generalizando) há mais pais (professores, educadores), muito interessados em dicas e técnicas de obediência. Querem longe da porta a resistência aos nãos, aos limites e eliminar conflitos. Ai o jeito que isso também me dava (confesso)! Mas também sei, por experiência própria e profissional, que o foco nunca pode, nem deve estar na obediência. O foco deve estar na relação.

É que uma relação que promove uma autoestima saudável, aumenta exponencialmente, a vontade que o outro tem de colaborar. Isto é essencial sobretudo, quando o outro é o nosso filho. Uma criança, um adolescente, um jovem adulto (nós, adultos!) que quer colaborar, significa que está a escolher de forma consciente porque sabe que esse comportamento é o melhor naquela situação específica, naquele contexto em particular. E é o melhor para si próprio, para o outro e para o todo. Mesmo que a sua escolha não vá ao encontro da maioria. Bem diferente da cultura de obediência a que (quase todos) crescemos sujeitos.

A obediência em si não é boa nem má. Depende a que é que estamos a obedecer, a quem estamos a obedecer, se temos a capacidade de termos pensamento crítico sobre o que nos está a ser pedido e se temos espaço para isso acontecer. O dilema inerente à submissão, à autoridade, é tão antigo quanto a história de Abraão a quem Deus ordenou sacrificar o filho como prova de fé.

A questão é que, na maioria das vezes, quem obedece não tem responsabilidade pelo que antecede e pelo que se segue. Obedeceu, cumpriu ordens. Pronto. Foi assim que aconteceu Holocausto, por exemplo. A investigação do psicólogo Stanley Milgram é reveladora. O objectivo do estudo era responder à questão sobre como é que os participantes observados tendiam a obedecer às autoridades, mesmo quando as ordens eram no sentido contrário do bom-senso individual e colectivo, mesmo quando iam contra os valores de quem obedece. Inicialmente, a investigação queria compreender e explicar o que motivava os crimes bárbaros cometidos durante o período nazi. Stanley Milgram estava interessado em conhecer a estrutura profunda do quão facilmente as pessoas comuns poderiam ser influenciadas para cometerem atrocidades e crimes contra a humanidade. Os resultados demonstraram a extrema disposição de adultos para obedecerem totalmente ao comando de uma autoridade. Por medo. Por ignorância. Pela necessidade de se sentirem vistos e reconhecidos por alguém de referência, hierarquicamente superior.

Um simples ato de reflexão talvez fosse suficiente para percebermos que ser obediente não é aquela característica fantástica que muitos apregoam. Basta ver os números da violência no namoro, da violência doméstica, também. Os abusos por parte das hierarquias, idem.

Guio as minhas filhas (e as minhas relações significativas) com base na Parentalidade Generativa, que assenta no princípio da igual dignidade, onde a criança é uma parte integrante de um sistema, com exatamente o mesmo valor/dignidade que os adultos, tendo liberdade de ser ( e não liberdade de fazer tudo o que lhes passa pela cabeça).

Já num modelo educacional mais tradicional, hierárquico e de obediência, a criança está fora do círculo (sistema), não faz parte se não se comportar exatamente da forma que é esperada. Do outro lado, quando há permissividade, a criança está no centro do círculo e tudo gira à sua volta e das suas vontades. O terapeuta familiar Jesper Juul dizia que: “uma criança que sente que está sempre no centro, não se sente parte do todo”. E quando não nos sentimos parte do todo, também não sentimos a vontade de colaborar naturalmente.

Ora, o caminho parece claro: passar por estarmos juntos no círculo (onde a figura do líder está presente) permitindo que a criança (o colaborador, o marido, os amigos) se sinta parte com a clara percepção que o seu contributo é importante para o círculo. Caso contrário, sentimos que temos de estar permanentemente a lutar pela nossa integridade e temos uma maior necessidade de questionar qualquer pedido de outras pessoas, mesmo que não sejam ordens diretas.

Ao contrário do que muitos por aí berram, as crianças querem naturalmente colaborar com os pais, com os adultos de referência e com os pares. Querem sentir-se vistas, amadas e reconhecidas. O seu comportamento é apenas uma forma de comunicação, uma manifestação do que se passa dentro de si próprias. Tal e qual como acontece connosco. Aliás, ao que mais tenho assistidos nos últimos tempos é a birras, valentes, de adultos. E não é só no trânsito.

Portanto, se o comportamento revela que algo não está bem, investigue-se, descubra-se quais são as necessidades que estão a gritar para serem vistas e acolhidas.

É que isso de querer mudar comportamentos, pela obediência, sem compreender a necessidade que está na origem, que não está a ser preenchida, vai fechar, para sempre, um importante canal de comunicação. E vai também secar a relação. Além disso, é um claro sinal para investigarmos, também, quais são nossos próprios limites, de onde emergem e como os estamos a alimentar e a comunicar.

Do outro lado nunca pode estar o apelo à desobediência. Até porque não é um exercício de pensamento crítico: “não faço isso porque me mandam!” É uma atitude que nasce da mesma natureza que a obediência: “fiz porque me mandaram”. Em ambas há ausência de reflexão crítica.

E quando não existe a liberdade de usar pensamento crítico, porque estamos simplesmente a reagir, a seguir vamos criar uma narrativa que justifique a razão por não estarmos a fazer algo. Só que o apelo à desobediência também não é um apelo à colaboração.

A construção da relação entre pais e filhos, entre marido e mulher, entre amigos, não é rápida. Assim como não o é nada que valha mesmo a pena. Pede presença, amor incondicional, tempo. Pede um olhar de compaixão para tudo o que precisa ser transformado, e pede, sobretudo, a coragem para o fazer. Que possamos todos nutrir valores como colaboração, com a intenção de contribuir para um mundo onde a maioria das pessoas se podem sentir seguras, cuidadas, vistas, reconhecidas, amadas, autênticas e responsáveis. Pode ser por aqui…

Aproveito para desejar um consciente Santo e Feliz Natal!