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Crónicas

Gambiarras, de preferência às cores

A Festa merecia tudo. O trabalho, o empenho, a casa virada ao contrário, as missas do Parto

Entre a minha adolescência e 2024 existe a distância de uma série de ficção cientifica e as pessoas que, como eu, cresceram numa curva de caminho com vista para os telhados da cidade, ainda são capazes de se espantar com os relógios de pulso onde é possível atender uma chamada do telemóvel. O Dick Tracy, personagem de banda desenhada e dos filmes, fazia o mesmo e todos sabíamos que isso e magia era quase o mesmo. Até para os adolescentes do walkman, do videogravador e de tudo o que as miúdas de dinheiro exibiam depois das férias em Canárias.

Lá por cima, fora a televisão a cores e o telefone em cima do aparador do quarto de jantar, a nossa rotina era do mais analógico que podia haver. Ou se estava em casa a tempo da telenovela ou não se via o episódio; ou se corria para atender a chamada ou era a minha mãe e era preciso explicar quem era o rapaz, o que fazia e de quem era filho. E às vezes não havia respostas para todas as perguntas, sobretudo para a mais embaraçosa de todas: era sério?! Aos 16 anos não é possível responder com o devido rigor.

O modo de vida na casa do Laranjal também assentava nesse abismo entre gerações e era gerido numa lógica que tentava ser justa e nem sempre era democrática. O meu pai e a minha mãe exerciam o poder sem complexos de culpa, era deles a palavra que nos condenava e a que nos permitia correr para o autocarro a tempo das sessão das quatro e meia no Cine Casino. Ou melhor, era a minha mãe que decidia tudo e isso ganhava ainda mais dimensão quando o assunto era a Festa.

A Festa merecia tudo. O trabalho, o empenho, a casa virada ao contrário, as missas do Parto, a escadinha, o presépio e a árvore com os enfeites e a gambiarra às cores. A minha mãe desdobrava-se em muitas, fazia bolos, passava a cera no chão e não admitia sugestões para enfeitar a árvore. O Natal tinha todos os enfeites guardados na caixa de sapatos, a gambiarra e o facho às cores no beiral da casa. “Não é outra coisa?”, dizia orgulhosa, sem perceber que nós queríamos como tínhamos visto nos filmes americanos, tudo a combinar com luzes simples.

Foi para celebrar a minha mãe - e já agora para contrariá-la também - que comprei duas gambiarras simples e alimentadas a energia solar para o alpendre. Afinal, entre a minha adolescência nos anos 80 e 2024 vai um pulo tecnológico saído de uma série de ficção, e quanto mais envelhecemos menos queremos parecer desactualizados. Talvez seja só de mim, mas há a conta da luz e o meio ambiente e a Festa também merece a adaptação. Eu acredito que sim - ou acreditava - não fosse o milagre da inovação aplicado às gambiarras de Natal ter falhado.

Da próxima, compro às cores e ligo à electricidade. Ou pergunto aos vizinhos como conseguem ter as varandas, as árvores e as janelas tão enfeitadas, com tantas luzes a piscar durante um mês inteiro. As mesmas varandas e quintais que, de uma certa forma, me trazem memórias da infância, daquele gosto tão particular e tão madeirense que a minha mãe encarnava.