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Crónicas

As permanentes e outros prodígios

As minhas tias não tinham as vaidades, nem o dinheiro ou a vida das senhoras elegantes que se sentavam na sala de espera do dr. Miguel, ali num primeiro andar de um prédio da Rua 31 de Janeiro. A saúde da minha mãe - a doença crónica com sempre viveu - levava-a lá todos os meses por causa das receitas e eu ia de arrasto, às vezes precisava de mais um par de braços para carregar bordados e compras e o que fosse preciso. O lugar não era o melhor para uma adolescente insegura, a minha sorte era ter pouco que pudesse impressionar aquelas mulheres de meia idade, com muita laca na cabeça e blusas de seda.

Enquanto eu me agarrava às revistas velhas que jaziam em cima das mesas, as conversas passavam pela empregada de casa, a rapariga que era do campo e tinha mãos de fada, além de cozinhar pratos de que nunca ouvira falar. A ementa era curta lá por cima e a minha mãe alimentava-nos como sabia, o melhor era mesmo a galinha guisada ao domingo, isso era de comer e repetir, mas as raparigas do campo que trabalhavam em casa das senhoras elegantes da sala de espera do dr. Miguel conseguiam bater os chefes de cozinha da televisão.

A minha mãe nunca abria ao jogo, nem dizia que fazia tudo: bordava, passava a ferro, cozinhava e ainda varria o quintal ao sábado. Acho que conhecia bem aquela escala social e sabia o que podia e o que não convinha dizer. “Sim, sim, são dois filhos, aquela que está encostada a um canto a ler uma revista e outro, um rapaz mais velho, que já anda no liceu” e nisso éramos mais ou menos com os filhos delas, os doutores e engenheiros ou candidatos a doutores e a engenheiros. A maioria elevava-se a essa categoria em Coimbra, a minha mãe dizia que era a cidade da universidade.

Às vezes, quando o dr. Miguel demorava a chegar para as consultas, a conversa ia dos filhos para as noras, essas, diziam elas, eram sempre bonitas, mas nem sempre simpáticas. O que parecia era que quanto mais bonitas, mais difíceis se tornavam e mais angústias traziam aos filhos. Ou então lamentavam os genros que, encantados por outras, tinham deixado as filhas para trás. Acho que, a seguir às histórias das telenovelas brasileiras, foi a primeira vez que ouvi falar de divórcio, coisa que, por essa altura, ainda não tinha chegado ao Laranjal.

A meio dos anos 80 as pessoas, quando casavam na igreja de Santo António, na Graça ou na Visitação, era para sempre, desse por onde desse. As histórias não eram sempre felizes, antes pelo contrário. Ali, por aquelas casas, vivia-se a dor do desencontro, do amor não correspondido, da desilusão e o sofrimento não era mais ou menos, mas custava a enfrentar a família, os vizinhos e a dividir os bens, quase sempre a mobília de quarto de casal que se arrumara num acrescento na casa do pai ou do sogro.

As conversas das senhoras elegantes e da minha mãe eram antes de mais conversas entre mulheres, daquelas que vão da dor genuína ao detalhe mais corriqueiro, em que se partilham os nomes dos cremes para a cara e para o cabelo. E foi lá que a minha mãe ficou a saber onde se comprava a ampola que dava um tom lilás ao cabelo branco e onde se fazia a melhor permanente, a bom preço e para durar três meses. A informação valia ouro para as minhas tias, a quem a genética não dera um cabelo farto.

E mesmo sem as vaidades e o dinheiro, a minha mãe, as minhas tias e as senhoras elegantes eram todas de uma mesma geração que, podiam não partilhar o mesmo lugar na escala social, mas sabiam a importância e o valor de uma boa permanente na vida das mulheres.