Números: contrastes e o tabu desafiado

Um dos temas mais frequentes de conversas e escritas atuais é acerca de números de pessoas por isto e por aquilo. Não há gente que chegue para isto e aquilo, para manter a Europa a funcionar, Portugal incluído. Escolas a fechar por falta de alunos; e, agora, falta de professores. Menos crianças a nascer que doentes a morrer. Idosos na solidão, sem gente, filhos, netos, cuidadores ao seu lado. Hospitais com falta de profissionais da saúde, exército sem candidatos, conventos vazios. E choca que nos países mais ricos o aborto provocado cresça desde há 50 anos para mais de 60 milhões nos Estados Unidos e seja questão a decidir eleições e dividir partidos. E a moda de aplicar a morte aos doentes moribundos de muitos países!

Por contraste, clama-se que há demasiados imigrantes a invadir os países ricos, multidões de turistas a encherem algumas regiões; aumento de pobres e crianças com fome, sem ensino e cuidados de saúde a pedir ajuda, em muitos países. Entretanto, a leitura da festa de todos os santos do Apocalipse de S. João, a contemplar o céu e a calcular o número dos santos, contou 144 mil vestidos com túnica branca do batismo, e logo a emendar o número por ver ali multidão imensa que ninguém podia contar. E, o mais interessante, acrescentou que todos cantavam os louvores do Cordeiro, Jesus Salvador; e, mais surpreendente ainda, branqueados com o seu sangue!

E aquele do Evangelho de Lucas a perguntar a Jesus: são poucos os que se salvam? (Lc.13, 23); e Jesus a ladear a pergunta e dar a entender que procurassem entrar pela porta estreita porque muitos não conseguiriam.

Outra maneira de olhar para os números dos povos da terra é ver o contraste chocante entre o Ocidente e o Sul. De um lado, países a viver na abundância, no consumismo e na diversão, absortos nos eventos da moda, gozo, ganância e modas comerciais, mesmo de prejudicar a saúde, reduzir a produtividade e perpetuar o número dos pobres, dos aditos e dos dependentes de alienações e de subsídios sociais.

E os povos do Sul? Vivem na penúria, carências múltiplas e muitos sofrimentos evitáveis. Povos da diversão, de um lado, e povos em privação, do outro. Um planeta, dois mundos em contrastes chocantes e escandalosos: de abundância e desperdício; e de penúria e miséria. O dia 2 de novembro, dos defuntos, faz memória e nivela a todos como as crises climáticas. Pode um mundo destes dar sentido de vida, consistente, ao outro?

Outros números em repetição lembram os dos mortos pelo Hamas a 7 de outubro de 2023, e os de Gaza durante um ano. Mais recentes são os mortos, desaparecidos e enlutados, de Valência. Em 20 anos, as crises do clima já ceifaram quase 600.000 vítimas. Números a chocar, alertar e interrogar. E o número dos que acorrem a chorar os seus mortos, a noticiar, socorrer; e os jornalistas, comentadores, bombeiros, voluntários, militares, a tentar dar alguns sentidos ao fenómeno e aos sofrimentos de raiva, agressividade e dor. Não se esperava, veio de repente, transtorno do clima, negligência humana, falta de alerta a tempo. Todos os sentidos possíveis? O mais significativo é o da solidariedade. E poderia ter sido evitada esta calamidade? E por quem? Com alertas? Mudando o clima? E no futuro, outros dilúvios semelhantes, poderão ser evitados? E permitam desafiar o tabu da morte: poderão os homens evitar a sua fragilidade e o seu morrer e o alheio? O número dos modos de morrer não tem conta. Quais se poderiam evitar? E morrer aqui ou ali, devagar ou de repente, mudaria muito? E quem poderia mudar o modo do seu morrer? Faria diferença morrer a odiar, com raiva, em lágrimas, desespero, oração, esperança? Será possível manter o coração aberto ao amor de Deus porque dele nada, nem a morte, nos poderá separar (cf.Rm. 8,35-39)? E o Papa Francisco na Universidade Gregoriana disse no dia 5: «É preciso saber para onde vamos, (…) o objetivo atual e último” para impedir a “coca-colização” da espiritualidade, pois “são muitos, infelizmente, os discípulos da coca-cola espiritual”.

Aires Gameiro