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Crónicas

Somos todos responsáveis!

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons. Martin Luther King Jr.

Acordei com vontade de escrever sobre os episódios fortes das últimas duas semanas. Na minha cabeça continua a ecoar a frase “quando mataram o meu amigo não quiseram saber, quando começaram a incendiar caixotes começaram a interessar-se”. O meu coração continua apertado. Sucederam-se centenas de debates televisivos sobre direitos humanos. Escutaram-se especialistas e auto proclamados especialistas.

Vimos nos ecrãs, pela primeira vez em Portugal, vozes e rostos de homens e mulheres que lutam diariamente por dignidade e justiça. Houve a coragem para denunciar (e as imagens revelaram) que em muitos (demasiados) bairros da cidade de Lisboa há uma lei marcial permanente; não há um policiamento normal. Quero crer que não chegará à Madeira. Vive-se uma realidade cultural e policial diferente. Contudo, a maior urgência dos que vivem nos bairros da Madeira é idêntica à dos que vivem nos bairros do continente: ter direito ao lugar. Significa ter direito à habitação, mas também ao exercício de cidadania. Sentir que se faz parte da cidade e sentir que se pode contribuir para transformar o sítio onde se mora. E porque defendo um Estado de Direito para todos, uma Constituição para todos, a começar pelos que mais facilmente são atropelados pela arbitrariedade do poder, nestas últimas duas semanas houve um momento em que quase acreditei (quase!!) que estava finalmente, aberta a porta ao diálogo honesto, por forma a iniciarem-se transformações sérias, profundas e urgentes. Só que, tal como eu, aqueles que pensaram que as duas semanas que passaram permitiram uma maior sensibilidade e caminhos de política pública enganaram-se. O que assistimos foi a intensificação da polaridade. A falta de empatia e a ausência de curiosidade para investigar o que está realmente, na base de comportamentos condenáveis (de um lado e de outro). E sobretudo, qual é o nosso nível de responsabilidade pessoal e social, nesta equação?! Sim, somos todos responsáveis. Todos!!

Continuo a ver o olhar de desdém e ódio de políticos e organismos competentes, para estas populações como sub-humanas. A revolta é tanto maior quando há políticos que apregoam propostas de medidas radicais e desumanas e estão, eles próprios, envolvidos em negócios obscuros, muito bem camuflados por testas de ferro, colarinhos brancos e lojas maçónicas.

A descrição do Daniel Oliveira, no seu artigo de opinião, no Jornal Expresso, retrata de forma transparente e cruel uma realidade que grita para ser mudada: “um polícia pensa mais tempo antes de tocar com um dedo num branco que fale bem e use gravata do que em disparar sobre Odair ou outro da cor dele. Este polícia não é pior do que nós. Nada disso. É, de certa forma, vítima do que esperamos dela. Apenas sabe que, aos olhos do País, não somos todos iguais. E que, por isso, as consequências do erro perante uns e outros serão diferentes. Apenas suja as mãos para responder ao nosso classismo, servindo-o.”

Perdoem-me, mas ainda não consigo escrever sobre este tema desde um lugar de paz. Não enquanto a cor da pele for um pretexto para diminuir o próximo, para lhe roubar, abruptamente direitos e lhe apontar deveres incoerentes e desproporcionais. Falo com propriedade. Tenho o privilégio de ter estudado e de ser amiga da Drª Patricia Novick, ativista pelos direitos humanos, que combateu nas ruas dos EUA, ao lado de Martin Luther King Jr, e que continua a trabalhar nas ruas e nos bairros de Chicago, junto das comunidades mais desprotegidas. A realidade da miséria humana é transversal, não conhece fronteiras.

É por isso que escolho reflectir (gostava mesmo que me acompanhassem no raciocínio) sobre o que poderá estar na base de tudo a que temos assistido. Ganhar esta consciência pode ajudar, e muito, a colocar um ponto final nestas situações. No fundo, vítimas e agressores, padecerão do mesmo mal…

Se queremos controlar tudo, geramos desequilíbrio, se não queremos controlar nada, geramos desequilíbrio. Logo, o ideal é encontrar um ponto intermédio. Controlar o que é possível controlar, viver curioso e aberto para investigar, acolher e lidar com o que não se pode antever, e por isso, não se pode controlar. Mas uma coisa é certa, sem justiça social não há paz!

É nestas alturas que recorro ao meu manifesto de mãe. Escrevi-o quando em 2010 escolhi pousar, por três anos o jornalismo, e dedicar-me a tempo inteiro à minha primeira filha (a única que tinha na altura). Mas não ficou apenas escrito no papel. Passou das intenções à prática (com os desafios inerentes ao corre corre dos dias) e revejo-o sempre que sinto necessidade de o fazer, até para perceber se faço ou não ajustes.

Um dos pontos centrais é este:

- Na nossa família vamos sempre ter a coragem de manifestar quem somos, em autenticidade, vamos ter a coragem de ser vulneráveis, vamos partilhar as nossas histórias de dedicação, de força e de resiliência, as nossas conquistas, as nossas lutas. Vamos aprender sobre compaixão, praticando auto compaixão, e depois juntos. Vamos partilhar e honrar os nossos limites, vamos confiar e vamos assumir responsabilidade por nós mesmos. A nossa integridade é sagrada. A tua (das minhas filhas, enteado e marido) e a minha. A nossa família será sempre lugar seguro, de amor e cidadania.

Os limites pessoais têm aqui um peso acrescido. Defini-los, reconhecê-los e praticá-los, com honestidade, permite que vivamos de forma mais integra e responsável. Para nós. Para o todo. Conseguimos respeitar os limites quando o nosso espaço e liberdade para satisfazer as nossas necessidades é também visto, reconhecido e respeitado.

Lembro-me bem das descobertas que fiz na minha definição de limites. Descobri, por exemplo, que muitos “nãos” que dizia, escapavam de forma automática e tinham origem nas minhas experiências pessoais, a maioria vividas na minha infância. “Nãos” com base na importância que ainda atribuía ao que os outros pensavam e esperavam de mim, na minha necessidade de segurança e controlo, no meu cansaço (sobretudo neste!). “Nãos” herdados do inconsciente coletivo, da cultura dos locais onde vivi.

As minhas filhas, o meu enteado, o meu marido, são pessoas e também têm os seus limites. Quando ouço e respeito os seus “nãos” crio uma oportunidade de demonstrar igual valor, respeito pela integridade, aceitação e colaboração. Tudo o que quero é que também o demonstrem por mim! E tudo isto faz diferença quando queremos genuinamente, contruir uma sociedade justa e equitativa. Uma sociedade para todos.

No meu manifesto, o primeiro ponto lembra a todos, na nossa família, que: acima de tudo, quero que saibas que és amada/o, exatamente como és, por quem és. Amo-te independentemente do que pensas, dizes, ou fazes. Amo-te por seres tu.

Acredito que se todos praticassemos este manifesto, o tema desta crónica seria um “não tema”. Que a coragem e a gentileza nunca nos faltem.