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Crónicas

Os (Re)Fluxos do IFCN

1. Restam-me poucas dúvidas de que esta tentativa de gerir os fluxos turísticos por parte da Secretaria Regional de Agricultura, Pescas e Floresta, se está a converter numa enorme trapalhada.

A análise aprofundada da Portaria n.º 556/2024, de 22 do mês passado, levanta sérias questões sobre a sua legalidade, destacando fragilidades e potenciais problemas que não podem ser ignorados.

A Portaria estabelece taxas para percursos pedestres classificados, assumindo que estes são de domínio público e administrados pelo Instituto de Florestas e Conservação da Natureza (IFCN, IP-RAM). Contudo, para um caminho ser considerado público é necessário que se verifiquem dois critérios: o uso directo e imediato pelo público e a imemorialidade desse uso. Se estas condições não forem satisfeitas, a classificação como público pode ser contestada, colocando em causa a legitimidade da cobrança de taxas.

Um problema adicional é a competência para a classificação dos caminhos. Embora as Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais possam classificar caminhos como municipais ou vicinais, a decisão sobre a natureza jurídica, ou seja, se o caminho é público ou privado, é da competência dos tribunais comuns. Isto significa que, se a natureza pública de um percurso específico não estiver claramente estabelecida, a aplicação de taxas pode ser considerada ilegal e potencialmente nula.

A imposição de taxas deve também respeitar o princípio da proporcionalidade, que exige que sejam adequadas, necessárias e proporcionais. No caso da Portaria, embora a cobrança de taxas possa ser justificada como medida de conservação, tal só será legítimo se os valores cobrados forem proporcionais aos serviços prestados e não representarem uma oneração excessiva dos utilizadores.

Outro aspecto crucial é o direito de acesso. Se a Portaria impuser taxas em caminhos cujo uso público tem sido imemorial e sem restrições, isso pode ser visto como uma violação do direito de acesso e uma restrição potencialmente ilegal, especialmente em áreas de património natural e turístico.

Estas restrições podem ter impactos negativos na economia local e na imagem da região. As implicações jurídicas de aplicar a Portaria sem garantias claras da natureza pública dos percursos são consideráveis. Entre os riscos estão a possibilidade de acções judiciais por parte de proprietários ou comunidades, que podem alegar que os percursos são privados ou constituem servidões de passagem.

Além disso, disputas legais podem levar à suspensão da cobrança de taxas, resultando em perda de receita e danos à credibilidade do Governo Regional. A aplicação incorrecta de taxas pode criar precedentes perigosos e dificultar futuras regulamentações, gerando desconfiança nas políticas públicas.

A Portaria, tal como está, apresenta dúvidas significativas de legalidade. Para mitigar estes riscos, seria recomendável uma revisão cuidadosa dos percursos para confirmar e publicar a sua natureza pública, assegurar que as taxas são justificadas e proporcionais, e envolver a comunidade em consultas públicas para validar a legitimidade da medida.

Sem estas salvaguardas, a Portaria poderá ser vista como um acto administrativo excessivo e potencialmente abusivo, comprometendo a preservação ambiental e a gestão sustentável na Região Autónoma da Madeira.

E ainda nem vou pelo “caminho” de se estar a tentar regulamentar, sem antes se estabelecerem os princípios legais por intermédio de um Decreto-Lei. Fica para outro momento.

Com base nisto, tanto a ACIF que alega não se terem cumprido preceitos acordados entre as partes, como um qualquer madeirense, podem impedir a aplicação desta Portaria com uma Providência Cautelar.

2. Na semana passada discutiu-se uma proposta do JPP que mais não queria do que atar o mercado dos TVDEs com regulamentos e limites de licenças. Parece coisa de quem acha que a liberdade é uma palavra esquecida no dicionário e que inovação é só um chavão publicitário. Uma proposta de índole profundamente estatista, típica de quem tem a mania que sabe o que é bom para os outros, reveladora de quem entende saber o que funciona e o que não.

Esse tipo de restrição é apenas uma maneira de fechar o mercado, dar uma falsa sensação de ordem ao público e, claro, proteger os donos das licenças de táxi que já se instalaram no sistema e não querem concorrência nem que esta se lhes imponha por decreto.

E o mais impressionante é o discurso de “equilíbrio” com que se tentou ornamentar a proposta. Querem “equilibrar o mercado” limitando quem pode entrar nele. Que tipo de equilíbrio é este? Não é equilíbrio coisa nenhuma; é uma balança de pesos fixos. É só mais uma forma de manipular para proteger os que já se encontram no topo da cadeia alimentar do transporte individual. E, neste caso, o consumidor é um mero espectador, forçado a aceitar o que vier, sem escolha, sem voz e com cada vez menos alternativas.

Querem convencer-nos de que o mercado está “saturado” e que, por isso, é necessário controlar o número de licenças. Mas quem disse que a saturação do mercado é um problema a ser resolvido pela política, neste caso pelo JPP? A saturação é parte do ajuste natural de qualquer mercado: é a procura e a oferta a fazer o seu trabalho, encontrando o ponto ideal. Mas, para o JPP, a ideia de um mercado autorregulado é como oferecer alho a um vampiro – é o terror dos reguladores, porque lhes tira das mãos o controlo sobre quem pode ou não trabalhar, quem pode ou não inovar, quem pode ou não competir.

Agora, vejamos o consumidor, que deveria estar no centro desta discussão. Quem é que saia a ganhar com a limitação de licenças? Certamente não é quem usa os serviços. Com menos licenças, a oferta é reduz, o que significa que as tarifas tendem a subir e o atendimento tende a piorar.

Afinal, se se sabe protegido da concorrência, para quê melhorar o serviço? E quem perde com isto? Todos, excepto os beneficiados por este sistema viciado, que estão confortavelmente instalados nas suas licenças e não precisam preocupar-se com quem quer que venha competir. É um ciclo de protecção à mediocridade, assegurado por uma lei injusta e sem sentido.

E é isso que realmente me incomoda, pois mantêm um sistema onde a inovação é vista como ameaça. Num mundo em que a tecnologia deveria estar a expandir opções, a melhorar serviços e a baixar preços, o que querem que façamos? Que coloquemos mais uma barreira. Esta política de limitar licenças é, na prática, um “não te metas” para quem quer entrar e competir com ideias novas. E não são só os TVDEs que sofrem com isto – qualquer sector que se veja preso nestas garras burocráticas acaba estagnado, imóvel, enquanto o mundo avança.

Então, por que não deixar o mercado fazer o que tem que fazer? Porque não pode ser. Porque isso significaria largar o osso, deixar as pessoas tomarem decisões por si próprias, e isso, para alguns, é tão assustador quanto ver o diabo ao virar da esquina.

A concorrência? Não, não pode ser. E se alguém vier com uma ideia melhor? E se aparecer um serviço mais barato, mais rápido, mais cómodo? Isso seria uma afronta.

Preferem manter tudo debaixo da pata do Estado, controlar cada licença, decidir quem entra e quem sai, porque, no fundo, têm medo de um mercado livre como quem tem medo de uma doença.

Do que precisamos é de políticas que confiem nas pessoas. Mas isso é pedir muito. Porque confiar nos madeirenses é perigoso, é dar-lhes liberdade, é dizer-lhes: “Façam o que acharem melhor.”

Mas claro está, não podemos fazer isso. Porque, para algumas cabeças iluminadas, se confiássemos nas escolhas dos madeirenses, muitos de nós teríamos de justificar a nossa própria existência.

3. Dietrich Bonhoeffer, teólogo e mártir alemão, escreveu uma reflexão profunda sobre a estupidez no seu livro Resistência e Submissão. Para Bonhoeffer, a estupidez não é simplesmente uma falha intelectual, mas uma condição moral e social perigosa. Argumenta que uma pessoa estúpida não é incapaz de compreender algo, mas que se torna, de certa forma, impermeável à razão, ao bom senso e à verdade. O perigo da estupidez deve-se a que ela pode ser manipulada e instrumentalizada por forças externas, tornando o indivíduo cego à realidade e susceptível à propaganda.

Bonhoeffer diferencia a estupidez da maldade, afirmando que, enquanto o mal pode ser enfrentado directamente e combatido com a justiça, a estupidez é mais insidiosa. Isto ocorre porque a pessoa estúpida age de maneira obstinada e autossuficiente, e é difícil persuadi-la ou fazê-la mudar de opinião, já que ela não responde à lógica ou aos argumentos racionais. Para o pensador, a estupidez cresce e propaga-se em ambientes onde há opressão e falta de liberdade, sendo muitas vezes o resultado de dinâmicas sociais que desencorajam o pensamento crítico e a responsabilidade individual.

Bonhoeffer conclui que a única maneira de superar a estupidez é através da libertação espiritual e intelectual, promovendo ambientes onde a liberdade de pensamento e o senso de responsabilidade possam florescer.

A verdadeira sabedoria não é apenas uma questão de inteligência, mas de coragem moral e discernimento.