O sonho pode ser contagioso
Sonhar é um talento que nem todos têm, mas o pai tinha
A minha adolescência foi uma travessia complicada onde quase nada jogou a favor, nem as circunstâncias, nem a natureza. Eu acreditava que a minha vida seria menos penosa se tivesse uns olhos verdes e outras qualidades físicas relevantes como uma cintura de vespa e menos 10 quilos. E tinha a certeza que, na impossibilidade de mudar o aspecto, seria mais fácil se pudesse compensar com umas roupas bonitas, mas nem a cor dos meus olhos se alterou, nem o meu pai ganhou o primeiro prémio do Totoloto.
Não foi por falta de esforço que, em matéria de dinheiro, o meu pai não se esquecia de jogar um boletim inteiro na ideia de ser rico. Todas as quintas-feiras eu preenchia o papel com as apostas, com o nome e a morada e a ordem expressa de não colocar a cruz no quadradinho do anonimato. Se ia ser milionário então queria uma entrevista na televisão e nós todos lá, sorridentes, a família do pedreiro que, com os números certos, entrara no reduto das pessoas muito ricas.
E sorria ao imaginar como seria tudo, como seríamos todos se a nossa sorte mudasse no sábado ao fim da tarde, depois do sorteio na televisão. O Totoloto alimentava as fantasias de todas as pessoas a meio dos anos 80, era dinheiro como nunca se tinha visto e o meu pai não era diferente. Todas as quintas-feiras, além do boletim com as apostas, eu também fazia o recibo para entregar ao dono da obra que estivesse a fazer. O preço da mão de obra, o preço do material, e era esse que entrava todas as semanas em casa.
O outro nunca passou dos sonhos e, por isso, vivemos dos recibos que o meu pai apresentava aos patrões com a minha letra de adolescente. A mesma adolescente que queria muito ter outra vida, outras roupas e outra figura e, todos os dias, tentava fazer o melhor com o que tinha, enquanto se arranjava em frente ao espelho grande do quarto de engomar. Esta saia e esta blusa e talvez ninguém desse pelos sapatos, era ter esperança até melhorar. Se não fosse com o Totoloto podia ser outra coisa.
Este optimismo vinha do meu pai, o mesmo homem que todas semanas reinventava a fé e acreditava que ia ganhar. E com isso enchia a nossa cabeça de planos, até de viagens à volta do mundo como se não fosse o pedreiro que, todos os dias, entrava na furgoneta que o levava para as obras. Sonhar é um talento que nem todos têm, mas o pai tinha o que a minha mãe dizia ser a arte de nos meter no coração e contagiar com projectos e planos e ideias como ter uma casa de dois andares e uma escadaria larga a meio.
E de uma certa maneira foi esse contágio que me amparou nos anos em que tudo parecia errado: o tamanho das ancas, a cor dos olhos, as roupas e a falta de habilidade social. Não era bom, mas podia ficar melhor e, fosse qual fosse a situação, nada me impedia de sonhar com o que quisesse. O meu pai tinha quase 50 anos, passara fome e começara a trabalhar aos 10 anos e, mesmo assim, não desistia disso, dessa coisa maior que tudo e que dependia do talento para imaginar.