Será que qualquer “maluquinho” pode pôr o MP a investigar com uma denúncia anónima?
O presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque, voltou, ontem, em São Vicente, a indignar-se com os procedimentos criminais que têm na sua origem denúncias anónimas. “É como as denúncias anónimas. Qualquer maluquinho hoje pega num papel, diz cobras e lagartos dos titulares dos cargos políticos e temos um processo [criminal] desencadeado. Isto não é um sistema de Estado de Direito. Isto é um sistema inquisitório, onde qualquer fulano ressabiado pode dizer cobras e lagartos de alguém. Eles têm o direito de insultar, difamar, mentir e dizer tudo o que quiserem”, declarou o chefe do executivo. Albuquerque tem insistido nesta argumentação desde que, a 24 de Janeiro deste ano, foi visado por buscas domiciliárias, no âmbito de uma investigação do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), por suspeitas de corrupção. Será que qualquer denúncia anónima é suficiente para que o Ministério Público mande abrir uma investigação?
O Código de Processo Penal estipula que a denúncia da prática de um crime pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais. Uma das formas admissíveis é a denúncia anónima. A denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito pelo Ministério Público se dela se retirarem indícios da prática de crime ou se constituir crime. Ou seja, terá de apontar uma situação concreta que seja tipificada como crime, além de indicar elementos que permitam identificar os suspeitos e situar no tempo e no lugar os factos.
Mas mesmo que sejam apontados estes elementos básicos, por vezes a denúncia anónima é insuficiente para determinar a instauração de inquérito. Há casos em que a validade da denúncia depende da sua apresentação pelo titular do direito de queixa, no prazo legalmente previsto, o que é pressuposto necessário para que o Ministério Público proceda criminalmente. Isso acontece nos casos de crimes semipúblicos (como ameaça) ou crime particular (como difamação). Nesses casos é necessário que o denunciante/queixoso se identifique e assine a queixa, ou que a apresente através de mandatário. Se tal não acontecer o Ministério Público não pode dar início ao procedimento criminal.
Quando a denúncia anónima não determinar a abertura de inquérito (por exemplo, por insuficiência de informações ou por ser manifestamente descabida), a autoridade judiciária competente promove a sua destruição.
A admissibilidade das denúncias anónimas em Portugal surge na sequência da Directiva Europeia de Protecção de Denunciantes, adoptada em Outubro de 2019, a qual obriga todos os estados-membros da União Europeia a implementarem mecanismos que assegurem canais de informação sem identificação, para que os denunciantes não sofram represálias.
Na página da Polícia Judiciária na Internet existe um canal para denúncias anónimas. Os denunciantes devem indicar o máximo de elementos básicos – identificação dos suspeitos (nome, idade, designação, descrição física, morada, localização, etc) e das vítimas; momento e local de ocorrência dos factos; e descrição o mais pormenorizada possível da situação criminal (o quê/como/porquê/quanto/etc). Após submeter a denúncia anónima, a mesma será processada assim que possível, não sendo por isso o meio adequado para recorrer com urgência às autoridades. Em caso de urgência será melhor contactar o serviço de piquete da Polícia Judiciária da área mais próxima.
Nesta página da PJ é referido que a denúncia anónima é uma forma de fazer chegar às autoridades competentes informação sobre a preparação ou o cometimento de crimes cuja denúncia possa pôr em risco a segurança do cidadão que transmite a notícia, ou a segurança de terceiros. É feita uma ressalva de que a denúncia anónima não é válida para as situações que careçam de participação criminal do ofendido (crimes semipúblicos ou privados). Nesses casos, o ofendido terá de apresentar uma queixa-crime em qualquer serviço de polícia ou do Ministério Público, ou, em alternativa, uma queixa electrónica.
Em resumo, não corresponde à verdade a ideia transmitida por Miguel Albuquerque de que qualquer denúncia anónima desencadeia uma investigação do Ministério Público. A autoridade titular da acção penal só abrirá um inquérito se a denúncia contiver elementos mínimos que indiciem a prática de um crime. Denúncias descabidas ou sem informação suficiente serão destruídas e não determinam a abertura de inquérito.