A Hidra de Lerna
A mitologia grega ainda nos fascina hoje, sábia, dois milénios passados sobre o seu apogeu, quer pela imaginação, quer pela assertividade dos seus conceitos.
Uma das entidades mais estranhas e enigmáticas é a Hidra, um monstro que amedrontava as terras de Lerna, aquelas mais a sul. Com um corpo de dragão e cabeça de serpente, já de si é repelente. Para ajudar neste desígnio maléfico, fazia-se acompanhar de uma horda de vorazes caranguejos (Câncer). Quando a besta era avistada, o pânico instalava-se. Diz também a lenda que era particularmente hostil com escravos e forasteiros, o que lhe valeu alguma simpatia inicial, no caso de pouca dura.
O curioso residia no fato de não ter uma, mas várias cabeças, geralmente cinco ou mais, diz a lenda. E aqui reside a verdadeira questão, quem, ou qual delas, mandava no “bicho”? Diz ainda a lenda, que uma delas era dourada e as outras cabeças tinham escamas prateadas. Mas uma coisa era certa, a fera sofria de distúrbios de personalidade, no caso, personalidades múltiplas. Só se entendiam para criar o terror e a devastação nas colinas de Lerna, mas já não se acertavam para fazerem algo construtivo. Várias cabeças que não conseguem pensar junto, aceitar compromissos e ter desígnios comuns é o que deriva da bicefalia (ou policefalia). Milénios depois, os gregos já nos avisavam da importância de pensar em conjunto e fazer compromissos…
Foi preciso um homem extraordinário, um semi-deus, Hércules, para decepar as cabeças da Hidra, evitar que elas voltassem a crescer, atirar os cânceres para a penumbra da noite onde hoje formam uma pacífica constelação, e assim trazer tranquilidade a Lerna. Bem… isto é uma lenda da mitologia grega.
E lembrei-me desta lenda a propósito de um exemplo contemporâneo de policefalia. Uma em que a cabeça, a “dourada”, aponta numa direção, e as outras quatro no sentido contrário. Em que as suas decisões têm motivos antagónicos. No caso, a decisão do partido Chega nacional, e a sua chefia “dourada”, impor às quatro cabeças parlamentares regionais uma censura ao governo da Região, quando estas estavam a negociar as medidas do orçamento regional. O “bicho” teve que estrebuchar, pois claro, cada cabeça queria mandar à sua maneira, azedaram, como a generalidade dos madeirenses percebeu.
A censura em si não está em causa. Um governo cuja maioria dos membros é indiciado por crimes graves de corrupção é caso inédito no país. É suficientemente inaudito, sem usar outro adjetivo, para chamar todos os representantes do povo madeirense a se pronunciarem sobre a legitimidade democrática. A questão é, porquê agora? Porque não, aquando do conhecimento público dos processos judiciais? Porque não, aquando do “desnorte” dos incêndios? Porquê agora, quando azeda a relação entre o Primeiro ministro e o líder nacional do Chega, exacerbada pelo acordo PSD/PS para o orçamento nacional? Tudo perguntas que, como pessoa inconformada que sou, me surgem.
E se há, como parece haver, votos suficientes para a tal censura acontecer, então o povo, tal como Hércules, que limpe a casa e ponha ordem na Região. A democracia, a tal inventada na Grécia, serve para isso mesmo.