“Salvar o Natal” o resgate das Tradições Madeirenses
O Natal sempre foi uma época de união, reflexão e celebração. Contudo, ao longo dos anos, o apelo comercial desta data tem, gradualmente, eclipsado muitas das tradições que outrora a definiam. Na Madeira, uma terra rica em história e cultura, o Natal tem um sabor especial, moldado pelas nossas vivências insulares e pelas memórias transmitidas de geração em geração. Porém, é urgente resgatar o que de mais autêntico temos, as tradições que tornam o nosso Natal verdadeiramente único, distantes do brilho das montras e do consumismo desenfreado, aqui não incluo as “luzes de natal”.
Uma das memórias mais vívidas da infância madeirense é a preparação dos presépios. Não se tratava apenas de comprar figuras e colocá-las numa estrutura pronta. O presépio era uma criação viva, quase como se fosse uma extensão da nossa alma. Pintar papel para forrar as montanhas de caixas que componham o presépio era um ritual que envolvia toda a família. A simplicidade desse momento – o cheiro da tinta, as pinceladas incertas das crianças, os conselhos dos mais velhos – criava uma ligação entre gerações e fortalecia o espírito comunitário. Um outro aspeto era a procura de “musgo e cabrinhas para compor as montanhas”. Hoje, infelizmente, muitas casas deixaram de lado este hábito, substituindo-o por decorações industrializadas.
O Natal madeirense tem um aroma inconfundível: o das broas acabadas de sair do forno e o do bolo de mel que impregna a casa com o seu perfume doce e rico. A preparação destas iguarias é, por si só, uma celebração. A família reúne-se para amassar a massa pesada e resistente, para moldar as broas e para partilhar histórias enquanto esperam que o forno faça o seu trabalho. O bolo de mel, com a sua complexidade de sabores, é uma verdadeira obra de arte culinária que, na Madeira, deve ser partido com as mãos, numa tradição que simboliza a partilha e a união.
Infelizmente, a facilidade de comprar estas delícias prontas fez com que muitas famílias abandonassem o hábito de as fazer em casa. Recuperar as receitas, e esta prática é recuperar também a alegria do processo: o riso enquanto a massa não cola como deveria, as dicas dos avós que aprenderam com os seus pais, o cheirinho inigualável de uma cozinha natalícia e a competição inter-famílias sobre a melhor receita.
Outra tradição que nos define são as Missas do Parto. Estas celebrações, realizadas nas madrugadas dos nove dias que antecedem o Natal, são mais do que um evento religioso. São uma manifestação da alma coletiva da Madeira. O som das vozes que cantam, a alegria genuína de quem madruga para celebrar o nascimento de Cristo e o calor do convívio que segue a missa – com o tradicional brinde de aguardente e as broas partilhadas – são insubstituíveis.
Estas missas, muitas vezes realizadas em pequenas paróquias fora do Funchal, convidam-nos a deixar o conforto da cidade e a reencontrar-nos com as nossas raízes. São também uma oportunidade para revisitarmos as aldeias, para estarmos com familiares que, no dia a dia, ficam afastados pela distância ou pela correria da vida moderna. E por falar nesta hipótese…
Uma das mudanças mais notáveis no Natal contemporâneo é a concentração da celebração nos centros urbanos. Muitos madeirenses, porém, têm as suas raízes em pequenas localidades, longe da cidade. Voltar a essas terras no Natal – sejam elas a casa dos avós, dos tios ou de familiares que já não vemos regularmente – é uma forma de recuperar o verdadeiro significado da festa.
Lembro-me de Natais passados em casa dos meus avós, num recanto da Madeira longe do Funchal. A simplicidade da mesa posta, o frio de uma manhã silenciosa, o calor do forno, as conversas sem pressa e as risadas que enchiam a casa têm um lugar especial na memória. Era um Natal sem pressões, sem pressa, sem a necessidade de trocar presentes. Tudo o que tínhamos a oferecer eram momentos genuínos e a nossa presença.
Outro aspeto central do Natal madeirense é o convívio. Na Madeira, o Natal começa cedo. Desde os primeiros dias de dezembro, os jantares de amigos, colegas e familiares tornam-se frequentes. Estes encontros – regados a “poncha” e conversas intermináveis – são uma oportunidade de estreitar laços e de nos prepararmos, emocionalmente, para o dia de Natal.
Estes convívios, no entanto, não devem ser vistos apenas como um pretexto para celebrar. São uma confirmação de que o Natal é, antes de mais, sobre as pessoas. Que este Natal seja uma oportunidade para olharmos para trás e reencontrarmos o que realmente importa. Que seja uma altura para nos desligarmos do que é supérfluo e nos conectarmos com o que é essencial. E que, ao fazê-lo, possamos passar para as gerações futuras o que de mais precioso temos: as nossas tradições e o amor que elas simbolizam.
Afinal, o Natal não é sobre o que damos ou recebemos. É sobre quem somos e com quem escolhemos estar. E na Madeira, somos abençoados por uma riqueza de tradições que nos ajudam a lembrar disso!
Feliz Natal a todos.